quarta-feira, 5 de março de 2008

CINEFALCO


Relatar a minha passagem pelo Cinefalco é escavar um contexto muito específico a diversos níveis, é voltar a pesquisar significados num percurso indissociável de tantas outras vivências, é recordar o que foi uma
busca e, sem o saber, se revelou um achado.
Recordar não é viver de novo, mas é sem dúvida cimentar o que se viveu. É também interligar velhas encruzilhadas, clarificar um certo tom baço teimosamente subsistente. É, além deste exercício íntimo, a partilha do fortalecimento e da formação enquanto pessoa em crescimento permanente, enquanto ser em busca de algo que o definisse. Esse encontro frontal com o cinema, com um novo modo de ver o cinema e a vida no cinema, reveste-se de uma intensidade mais gritante quanto mais feroz era o desamparo e o sentimento de deriva numa escola, em todo um processo algo afastado de muito a que me pudesse socorrer ou sustentar na ânsia, natural, de crescer identificado com algo. Mesmo que essa caminhada se salpicasse pela margem, alheada dos moldes da normalidade, mesmo que nem no desvio conseguisse encontrar uma norma.
O encontro, o confronto também, não seria possível sem a figura do professor, inabalavelmente querendo ensinar a quem inabalavelmente queria aprender. Voz de agressiva inconformidade, voz de serena inquietude revelando novos trilhos sobre o ecrã sempre pairando por detrás de si, fintando as tristemente solitárias tardes de quarta-feira com a invariável vontade de estar presente. Tristes pelo desinteresse geral, tristes por um olhar que assim subsistiu tolhido em algum isolamento, mas redobrado em cumplicidade, em partilha, no sustentar de uma relação que cresceu e se alimentou em grande parte dessa persistência, desse interesse nunca derrotado, dessa fome de saber, mais forte que tudo em redor.
Do interesse em aprofundar esse olhar, à vontade em querer partilhá-lo pela escrita, percorreu-se uma considerável distância num pulo humilde mas audaz e consistente. É quando o querer saber sempre mais se alia ao fervilhar desse desejo, que o resguardar para si mesmo se torna insustentável, crescendo com incontornável força a necessidade de mostrar, de dissecar ainda mais o objecto que se ama para um público com o qual se pretendia comunicar sem barreiras, em olhar frontal de amizade e cumplicidade. Um público que se desejava e deseja participativo, leitor interessado de um jornal que sobrevivia e sobrevive pela força do trabalho, pela paixão de (de)ver feito, de saber completo um esforço comum, pela garra de se assumir vivo e tornear o entorpecimento geral.
Hoje resiste à erosão do tempo uma alegria distanciada, um conforto em saber ter acontecido, ter feito parte com mais algumas pessoas de um passado recente que deixou marcas, que subsiste indelével porque indeteriorável. Um passado que resiste intocável porque avesso a modas, tendências ou adulterações, um passado pleno de camaradagem e de amizades que resistem ao passar dos anos... as de carne e osso e as de celulóide.
Hoje o caminho é bem menos turvo e bem mais definido. As inquietações subsistem, talvez com outra roupagem, porque inquieto é todo aquele que não consegue deixar de pensar o mundo em que se encontra, que o quer agarrar em vez de cobardemente pairar sobre ele. Ao professor Luís Ribeiro agradeço muito do que posso considerar ser hoje, muito do trilho pelo qual enveredei, muito do material com que me fui construindo neste tempos. Agradeço-lhe o interesse, agradeço-lhe a vontade de acreditar e a persistência em mostrar que ao crescermos para os outros, crescemos também face a nós mesmos. As "lições", as dicas, as conversas, cinéfilas e não só, foram agarradas com força e exactidão, numa ânsia que não estagna, mas evolui, alimentando-se de si mesma num ciclo que espero interminável.


Manuel Jorge Pereira - Curso de Estudos Artísticos da U.C.