quarta-feira, 9 de junho de 2010

OS FILÓSOFOS E O SEU PAPEL NOS PERÍODOS PRÉ E PÓS REPUBLICANO


No ano em que se comemora o primeiro centenário da proclamação da República, faz sentido uma reflexão – mesmo que breve e sem pretensões de grande pormenor - sobre o papel desempenhado por alguns intelectuais portugueses, nos períodos anterior e posterior à sua implantação.
Na curta e despretensiosa divagação que se segue, vão ser lembrados apenas alguns dos que estiveram ligados à Filosofia e às questões de natureza filosófica em voga no seu tempo.
Colaborando activamente com outras forças antimonárquicas, em que se incluíam escritores, artistas, e militares dos vários ramos e outros, os filósofos portugueses desempenharam um papel de relevo nos movimentos e defesa dos ideais que levaram ao estabelecimento e consolidação do novo regime.
Convém contudo, antes de o fazer, dar uma breve ideia do ambiente liberal em que nascem e se desenvolvem as tendências republicanas no nosso país, já que as primeiras referências que lhe são feitas, embora tíbias, surgem já no início da Monarquia Constitucional e estão ligadas aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que foram lema da Revolução Francesa.
É nas Cortes Gerais de 1820 – noventa anos antes da proclamação da república – que se faz alusão a um ideário republicano, embora não estivesse bem clarificado e ainda menos consolidado um corpo doutrinário que lhe desse suporte – uma indefinição que havia de perdurar durante todo o período da monarquia constitucional. A permanente instabilidade política, o estado de subdesenvolvimento e as condições socioeconómicas do país, favoreciam o desenvolvimento e expansão das ideias republicanas.
Em pleno período da Monarquia liberal, Oliveira Martins, na sua História de Portugal, refere a degradação do país e das suas instituições. Assinala as contradições entre as promessas e a acção dos políticos que deixavam o povo incrédulo e desconfiado: ”A idolatria da liberdade e do progresso, em cujo nome os ideólogos o agitaram com sucessivas revoltas, só poderia ser para os homens educados pela Europa contemporânea. O povo, quando os seguia, era apenas arrastado por seduções, por influências, por ilusões – porque não havia, nem podia haver nele consciência”. E, continuando a descrever as causas que corrompiam os alicerces da monarquia liberal, diz: “ Não concorria para esse resultado a ideologia liberal, apenas, pois, com os seus processos condenáveis, com as suas tendências intolerantes, os nossos doutrinários semeavam também a anarquia, ao mesmo tempo que procuravam
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consolidar a obra da revolução (…). Deste conflito de opiniões e pessoas nasceu uma situação que todos vieram a reconhecer intolerável. Quando dizemos todos, referimo-nos aos políticos; porque, na sua grande massa, o povo, não compreendendo a nova religião, desadorava-a por ver que esse verbo novo não conseguia estabelecer uma paz e uma fortuna que agora, depois de 34, já, pelo menos, sabia desejar.” ( Oliveira Martins, História de Portugal) . E, em “Estudos sobre a Reforma em Portugal, escrevia José Félix Henriques Nogueira, (1823 -1858),um dos fundadores do republicanismo e do socialismo:” quisera que, num país como o nosso, emancipado por cruentos esforços da tutela humilhante, egoísta e sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regime espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas estéreis e de cicatrizar feridas que ainda gotejam, ávido, enfim, de gozar as doçuras da liberdade por que tanto há sofrido, o governo do Estado fosse feito pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de República”.
O desgaste e descrédito da monarquia liberal tinham vindo a roer o regime lenta mas teimosamente. A contestação em crescendo, atingiu o seu pico mais alto aquando do Ultimato Inglês. Os termos e exigências feitas pela Inglaterra ao governo português, relativamente aos territórios africanos entre Angola e Moçambique, constituíram uma verdadeira humilhação para o País, e serviram de detonador para acirrar os ânimos contra o regime monárquico. A falácia da tão propagandeada aliança anglo-portuguesa caía por terra,
e deixava bem claro o nosso papel, não de país aliado mas de simples protectorado de que a Inglaterra se servia no seu jogo político e estratégias de poder no contexto europeu.
Mas, outras fortes razões de natureza interna explicam a instabilidade do País nessa altura. As lutas político-partidárias, as cisões dentro dos próprios partidos e a criação de novos partidos originavam uma enorme instabilidade e consequentes quedas de governos. Cartistas, defensores da Carta Constitucional de 1826, gladiavam-se com os Setembristas, facção mais à esquerda do movimento liberal, que tinha as suas raízes no Vintismo e que acabou por se cindir em duas facções – a moderada e a radical. O Partido Regenerador é fundado em 1851 pelos Cartistas - um partido monárquico, conservador de direita, que se manteve até à proclamação da República. Personalidades públicas, intelectuais, associações de carácter sociopolítico, associações secretas, a imprensa jornalística e panfletária exerciam também forte influência sobre a classe política e sobre o País. De entre elas merecem referência, embora só de passagem, e sem entrar em pormenores da sua acção político-social, organizações como a Maçonaria, a Carbonária, O Sinédrio, O Cenáculo, as Conferências do Casino (depois proibidas) e outras.
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Por sua vez, jornais, revistas e panfletos das mais diversas orientações políticas, reflectiam as diversas correntes de opinião, contribuindo não só para divulgação de informações e esclarecendo, como também para a radicalização de posições. Algumas dessas publicações sustentadas pelos diversos partidos tiveram uma existência efémera.
Recordando apenas alguns deles, são de referir: “O Republicano” 1848, “Eco dos Operários” ( 1850-51) ligado à fundação do “Centro Promotor das Classes Laboriosas”, ( 1853), “A Esmeralda” (1850-51), “A Península”, (1852-53) “O Almanaque Democrático” (1852-55), “ República “ (fundado em 1911 por António José de Almeida), “Nova Silva”, “A Águia”, ” A Vida Portuguesa” e muitas outras.
Aqui fica, a título de exemplo, um curto extracto do primeiro “jornal” publicado ainda em pleno período liberal:
Nº 1 do Jornal “O Republicano “ Anno de 1848”:
“(…) Somos republicanos, queremos a república(…) Sobre as ruínas de um throno cravaremos o estandarte do povo.(…) Os nossos dogmas políticos são Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Povo! Tende fé na mocidade, ajudai essa cohorte valente e ilustrada que se levanta a defender os vossos direitos. (…) Os Cabrais ,esses áulicos vis e devassos dictam-vos as leis nos paços reais , esse homens de facção mareados pelo Omnipotente com o scelo indelével dos traidores, espezinham-vos cobardemente. (..) O pauperismo, essa lepra da sociedade actual, só pode desaparecer com um governo republicano” (…)
Num outro “Jornal do Povo” nº 1 de A REPÚBLICA, também de 1848, segue-se, depois de uma breve introdução o artigo: “ REPÚBLICA ! Governo da Natureza? Governo da Igualdade! Governo da Liberdade sem licença! E Portugal quer a República? Dizemos que sim, porque o homem está sempre disposto a abraçar, e a seguir o bem. (…) ”
Mas o percurso a percorrer pela República não se mostrou, como se esperava e a propaganda política queria fazer crer, um mar de rosas.
Já no discurso ao Parlamento proferido numa das sessões para aprovação da constituição republicana, o Presidente do Governo, Teófilo Braga afirmava: “ Onze Constituições foram apresentadas a este Parlamento; é um fenómeno muito especial de psicologia para notar o estado mental sobre a compreensão deste problema mago, como se a Constituição política fosse uma obra mecânica que cada qual pudesse talhar a seu modo, exibindo visualidades subjectivas. (…) Sendo esta a Constituição, nota-se que aí não há ponto de vista de doutrina não há critério científico ou político; fez-se como uma cousa material desconexamente amalgamada e ilógica”.

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É nestes contextos liberal e republicano, intranquilos e aparentemente sem rumo definido, que se enquadra a acção intelectual e política dos filósofos e outros homens da cultura portuguesa. E, se nem todos se notabilizaram pelo seu empenhamento activo na luta pela instauração do regime republicano, muitos outros o fizeram, sacrificando, por vezes, a própria liberdade, pagando com o exílio ou a prisão a luta travada pelas mudanças que, a seu ver, poderiam pôr o País no caminho certo do desenvolvimento, da justiça social, do bem estar dos seus concidadãos e da reposição da dignidade de Portugal entre as nações.
Assim, e por ordem cronológica de nascimento, aqui ficam algumas notas sobre alguns desses intelectuais filósofos que ao seu pensamento juntaram a palavra e a acção política.



Antero de Quental (1840 – 1891). O poeta, filósofo e político que Eça, considerava “ um génio que era um santo”. Dotado de uma cultura extraordinária, conhecia bem as correntes filosóficas do seu tempo tendo--se deixado influenciar fortemente por alguns filósofos alemães, como confessa na sua carta de 14 de Maio de 1887 a Wilhelm Storck : ” … fiquei definitivamente conquistado para o Germanismo; e, se entre os franceses, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi, sem dúvida, por serem estes dois os que mais se ressentem do espí-
rito de Além-Reno. “Li depois muito de Hegel (…). O Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual”. Para Antero, “A Filosofia é eterna como o pensamento humano: mas, porque é eterna como ele, é que é como ele continuamente instável e flutuante, susceptível de progresso e sujeita a retrocesso …”(As Tendências Gerais da Filosofia na segunda Metade do Séc. XIX).
Em 1868, fundou, com outros colegas universitários, o Cenáculo onde deixou clara a sua orientação republicana. Em 1869 criou, com Oliveira Martins, o jornal “República” e com José Fontana editou a revista “O Pensamento Social”. As suas preocupações sociais explicam a sua aceitação das ideias de Proudhon de matiz socialista, cuja influência sobressai na sua obra poética “Odes Modernas”.
Escreveu panfletos, colaborou em jornais, participou em conferências. Também algumas contradições lhe foram atribuídas em posições tomadas relativamente à união ibérica que mais tarde veio a repudiar. Conhecedor das doutrinas de Marx e Engels e defensor das classes trabalhadoras fundou em Portugal, a Associação Internacional dos Trabalhadores: “As conferências democráticas tinham sido fundadas por mim, com o concurso de homens moços(…) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operária” (Carta a Wilhelm Storck).
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Em 1890, como resultado do humilhante Ultimato Inglês, foi chamado a dirigir o movimento de repúdio “Liga Patriótica do Norte”, fundada como reacção contra a atitude e exigências impostas pela Inglaterra ao nosso País.
Numa fase do seu pensamento político defende a União Ibérica mas, posteriormente, duvida do interesse dessa união e, finalmente, evoluiu para uma posição firme, favorável à manutenção da unidade nacional. Condenou também os movimentos açorianos favoráveis a uma ligação aos Estados Unidos, separando-se de Portugal, o que , a seu ver traria aos açorianos mais desvantagens que ganhos.

Teófilo Braga ( 1843 – 1924)
Conhecido pela sua vasta cultura, pela coerência política e pela sua firmeza de princípios, deixou uma notável obra abrangendo vários domínios: poesia, ensaio e antologias. Na literatura destacam-se Folha Verde, Stella Matutina, Tempestades Sonoras, Contos Tradicionais do Povo Português. Deixou-nos também a História da Poesia Popular Portuguesa, História do Direito, História da Universidade de Coimbra, História do Teatro Português, História das Ideias Republicanas em Portugal. Além disso colaborou em jornais foi co-fundador e director das revistas “Positivismo”, “A Era Nova” e ”Revista de Estudos Livres”. A sua orientação filosófica é caracterizada, numa fase da sua vida, pela adesão ao positivismo de Augusto Comte, cuja influência lhe serviu de orientação e exteriorizou em vários escritos, entre os quais sobressaem “Traços Gerais da Filosofia Positiva Comprovados pelas Descobertas Científicas Modernas” (1877) e “Sistema de Sociologia” (1884). Pelo seu interesse pelo positivismo e pelo grande trabalho de divulgação que encetou e pela forma decisiva como contribuiu para a sua divulgação, foi considerado o chefe da escola positivista no nosso País.
Em 1906 é criada a Fundação do Círculo de Estudos Sociais Teófilo Braga. Integrou a famosa geração de 70, que defendia a reforma das mentalidades e da cultura na segunda metade do Séc. XIX.
A sua acção política ficou também marcada por repetidas participações como membro do Directório do Partido Republicano Português. Em 1878 concorreu a deputado pelos republicanos federalistas e exerceu vários cargos no Partido Republicano Português.


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No ano de 1909 realiza-se, em Setúbal, o Congresso do Partido Republicano Português que criou um Directório que ficou encarregado de fomentar a Revolução, e do qual ele mesmo fazia parte. Em Agosto de 1910 foi eleito deputado por Lisboa e a 5 de Outubro do mesmo ano, foi indicado para Primeiro Presidente do Governo Provisório, cargo que mantém até 1911. A sua escolha para a primeira presidência foi muito influenciada por Afonso Costa e fortemente contestada pela Carbonária, a cujos quadros não foram atribuídos cargos no novo Governo. Em Maio de 1915, depois da renúncia de Manuel de Arriaga, ocupou a Presidência da República, lugar que mantém até Agosto do mesmo ano.

.Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-94),

Foi um dos espíritos mais cultos do seu tempo, tendo deixado uma vasta e diversificada obra abrangendo a história, a literatura, a política, a economia e a antropologia. Entre as suas obras merecem relevo “A Teoria do Socialismo”, “Portugal e o Socialismo” ”História da Civilização Ibérica”, “ História de Portugal”, “História da República Romana”, “Os Lusíadas, Ensaio sobre Camões e a sua Obra”, “A Inglaterra de Hoje”, “Portugal nos Mares” “Portugal em África” entre outras.
Conhecedor das correntes filosóficas do seu tempo e dotado de um espírito aberto, Oliveira Martins foi influenciado quer pela corrente do racionalismo iluminista, quer pelo movimento de ideias dos românticos alemães e ainda pela corrente socialista de inspiração proudhoniana. Também conheceu e teve em grande conta as teorias do filósofo alemão Hegel, que considerou o “Aristóteles da era moderna”. Fez parte do Grupo dos Cinco, com Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Antero de Quental, e do Cenáculo. Aderiu ao Movimento Socialista e foi deputado pelo Partido Progressista.

José Pereira Sampaio Bruno (1857- 1915)
Foi ensaísta, escritor, e filósofo. No campo das ideias, começou por ser um seguidor de A. Comte mas cedo abandonou esta posição. Liberdade, Igualdade e Fraternidade eram o seu lema. A sua intervenção política passou por fases diferenciadas. Desde muito cedo se dedicou ao jornalismo e aderiu aos ideais republicanos, tendo desempenhado um papel importante no partido. Tomou parte na revolução

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republicana de 1891, o que lhe valeu um exílio em França entre 1891 e 1893. Depois do exílio a sua atitude política sofreu alguns desvios devido, sobretudo, à sua incompatibilidade com a disciplina partidária e desacordo em relação à orientação e acção do partido depois de 1910. Passou então a dedicar-se mais ao estudo de temas filosóficos, religiosos e crítica literária. O seu espírito aberto não o impede de se dedicar ao estudo de fenómenos místicos e correntes esotéricas.
Exerceu forte influência sobre intelectuais como Teixeira de Pascoais, Jaime Cortesão, Fernando Pessoa e filósofos como Delfim Santos, Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra e José Marinho.
Dentro da sua obra merecem especial referência: A Geração Nova, 1886 (ensaio); Notas do Exílio, 1893 (ensaio); A Ideia de Deus, 1902 (ensaio); O Encoberto, 1904 (ensaio); Os Modernos Publicistas Portugueses, 1906 (ensaio); Portuenses Ilustres, 3 vols., 1907-1908 (ensaio); O Porto Culto, 1912 (ensaio); Os Cavaleiros do Amor, 1960 (ensaio, edição póstuma)


António Sérgio (1883-1969)
Tinha cerca de 27 anos quando se implantou a República e a sua obra e acção política e cultural surgem com todo o seu vigor e diversidade só depois desta data. Até aí tinha sido oficial da Marinha, mas após a queda da Monarquia, deixou a carreira e passou a dedicar-se à actividade intelectual .
De uma cultura invulgar, exemplar honestidade e firme força de carácter, deixou para além do seu exemplo uma obra admirável . Falando-nos de si, escreveu no artigo “Sobre o Problema da Liberdade em André Gide”, ( Ensaios Tomo VII). “(…) A minha cultura não é primacialmente literária, mas sobretudo científica, filosófica, sociológica e pedagógica (…)”, e sobre o seu conceito de filósofo, esclarece; “Um filósofo (ao que me parece) não é um sujeito sabedor num certo número de matérias a que se dá o nome de “filosofia”; é um homem com capacidade de elucidar ideias – em qualquer domínio; mais particularmente creio que filosofar é lançar certa luz nos domínios das ideias fundamentais”.
O vigor, diversidade e actualidade da sua obra, as suas actividades política e cultural, a coragem com que enfrentou a ditadura do Estado Novo, tornaram-no uma referência incontrolável para quem quer estudar a evolução política, cultural e social do País a partir
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da 1ª República até 1969, ano da sua morte. Notabilizou-se como crítico social, literário, ensaísta, filósofo, historiador e pedagogo. Crítico do panorama político que então se vivia em Portugal e do nosso atraso nos campos da educação e da realidade socioeconómica, achava que, sem uma forte transformação das mentalidades, não seria possível alterar a situação em que nos encontrávamos. Defensor da liberdade, da democracia e dos direitos de cidadania, escrevia no artigo “Relanços de Doutrina Democrática”, publicados na revista “Seara Nova”, de Janeiro de 1933: “Se o português não tem, por exemplo, a educação cívica do inglês, o remédio é treiná-lo para a liberdade, para a vida política consciente, permitindo-lhe adquirir, assim, a educação cívica de que carece. Ora, a educação para o civismo faz-se pelo uso dos direitos cívicos”. E mais adiante, no mesmo artigo, esclarecia o que entendia por democracia: “ Democracia não é uma escola política, no género das escolas literárias. É um imperativo de consciência, e tão perdurável como a consciência humana”. A sua posição face às classes trabalhadoras deixa-a bem clara quando, no mesmo artigo escreve; “A classe dos trabalhadores não é para mim como outra qualquer. (…) A educação e emancipação dos trabalhadores, o chamamento dos operários à mais alta vida espiritual, é preocupação suprema de um político de hoje”.
Conhecedor da realidade social do País, e das dificuldades e pobreza das classes mais desfavorecidas, propunha soluções no sentido de lhes melhorar as condições de vida, baseadas nos princípios humanistas que defendia nas suas reflexões de natureza filosófica e sociológica. Considerava a paz, a alegria, a felicidade, a beleza da vida familiar e a liberdade como objectivos fundamentais a atingir. Quanto à solução para os problemas económicos, e conhecedor das teorias marxistas, aceitava nelas a sua faceta humanista de reabilitação das classes trabalhadoras desfavorecidas, mas rejeitava o socialismo de estado. Era um defensor convicto do sistema económico cooperativo, um sistema que se baseasse num espírito de cooperação, esforço colectivo, ajuda mútua, solidariedade humana e honestidade. “Hesito perante o socialismo de Estado, por isso mesmo que sou democrata; prefiro o socialismo cooperativista” (…) Sou antiestatista, eu. Não peço, portanto, o socialismo de estado (…)” in “ Relanços de Doutrina Democrática”.
Como pensador, pedagogo, historiador, ensaísta e filósofo empenhado no desenvolvimento cultural e divulgação das ideias democráticas no seu País, deixou obra notável dispersa por artigos de revista, jornais e livros. Fundou a revista “Pela Grei”, colaborou em revistas como “A Águia” (1910), ”Vida Portuguesa” (1912) Foi director da revista “Seara Nova” ( 1923),” Ensaios” (vários volumes , abarcando os mais diversos temas), “Democracia”, ”História de Portugal”.
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Desempenhou o cargo de Ministro da Instrução, foi co-fundador do movimento “Renascença Portuguesa”. Saiu para o exílio após a revolução de 28 de Maio de 1926.
Inconformado com o novo regime político do Estado Novo, acabou por passar várias vezes pela prisão, devido às suas posições contra a ditadura. E, para concluir esta breve reflexão sobre A. Sérgio e a sua obra vale a pena transcrever da obra “Democracia, Cartas ao Terceiro Homem” o pequeno extracto: “Em suma: só estará de acordo com os meus temas básicos quem tiver intuitos fortemente humanistas; quem for favorável à melhoria do povo, e desfavorável à omnipotência dos tubarões da Finança”. E numa “Alocução aos Socialistas – No Banquete 1º de Maio de 1947”, que podia ser dirigida a outros partidos , deixa um recado: “Aos nossos socialistas, quanto a mim, compete-lhes resistirem ao tradicional costume de se empregarem espertezas e competições de pessoas para apressar o momento em que hão-de chegar ao poder, e nunca considerarem as outras secções democráticas (as outras orientações do esquerdismo) como suas competidoras numa corrida para a meta, como suas concorrentes num mercadejar político, na grande eira tumultuosa das ambições de mando. (…) Antes de tudo, buscai prestigiar-vos ante a nação inteira pelo timbre moral da vossa alma cívica”. (in Obras Completas-Democracia)
António Sérgio morreu em Lisboa em 24 de Janeiro de 1969.


Leonardo Coimbra ( 1883-1936)

Filósofo, orador e político, Leonardo Coimbra, desempenhou um papel importante na cultura e política portuguesas. O seu pensamento filosófico reflecte uma orientação espiritual de oposição ao empirismo e ao idealismo. A sua obra abrange um variado leque de temas sobretudo de conteúdo filosófico: Criacionismo (Esboço de um Sistema Filosófico), Criacionismo (síntese filosófica), Problema da Indução, A Razão Experimental, Pensamento Criacionista, Notas sobre a Abstracção Científica e o Silogismo, Problema da Educação Nacional.
O Criacionismo era uma linha de pensamento filosófica que defendia as capacidades criadoras do pensamento liberta de qualquer determinismo, quer social quer cultural.



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Fundou com Jaime Cortesão e outros, a Sociedade Amigos do ABC, destinada a combater o analfabetismo, foi co-fundador da revista Nova Silva – de orientação anarquista (1907), e da revista “A Águia”, de que foi director e também colaborador.
Fundou,em 1912 com António Sérgio e Raul Proença o Movimento da Renascença Portuguesa, um movimento com objectivos doutrinários, que procurava dinamizar e divulgar a cultura portuguesa através de revistas, jornais, livros e bibliotecas. Publicaram a a revista “Águia” – Orgão da Renascença Portuguesa, entre 1910 e 1932.
A sua actividade política como ministro permitiu-lhe criar as escolas primárias superiores, a Faculdade de Letras onde também foi professor de filosofia e reformar a Biblioteca Nacional. A sua orientação e actividades políticas não foram lineares. Evoluiu, com o tempo, dos grupos anarquistas de que fez parte na sua mocidade, para os ideais republicanos. De membro do Partido Republicano Português, passou-se para a sua facção dissidente, aderindo à Esquerda Democrática. A sua participação activa na vida intelectual e política do País é bem visível na variedade e multiplicidade da obra deixada em defesa da democracia, da justiça social, e da cultura.

Raul Proença ( 1884 – 1941)
Filósofo, doutrinário e activista político cedo aderiu aos ideais republicanos e a sua participação activa na política levou-o a intervir na revolução de 3 de Fevereiro de 1927, o que lhe valeu a exoneração do cargo que desempenhava na Biblioteca Nacional e a ter de se exilar em Madrid. Activo na sua colaboração com a imprensa, escreveu para jornais como “O Republicano”, “A República” para a revista “A Águia”. Integrou o grupo da Renascença Portuguesa – organização que defendia um ideal nacionalista, tendo como finalidade, nas palavras de Jaime Cortesão, “dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana”. Posteriormente a sua evolução ideológica leva-o a fazer parte do grupo fundador da “Seara Nova”. Espírito aberto e democrático, crítico dos vícios e caminhos errados que a República cedo começou a trilhar e não dava sinais de corrigir, a acção de Raul Proença era sobretudo de forte cunho ético-político. A corrupção que grassava no regime, a decadência económica, a falta de sentido de bem comum e solidariedade social, a sobrevivência dos privilégios que tão criticados tinham sido durante o regime monárquico, tudo isso contradizia em absoluto as

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razões e argumentos utilizados pelos primeiros republicanos, factos que desacreditavam o regime e geravam um mal estar incompatível com os ideais sempre apregoados de prosperidade e dignidade da pessoa humana. Daí o seu empenho activo na vida política.
O seu pensamento filosófico foi influenciado por Leonardo Coimbra. Posteriormente a sua evolução ideológica levou-o a fazer parte do grupo fundador da “Seara Nova”. Aderindo à corrente socialista, entendia o socialismo como um processo político em que o poder do Estado se não podia sobrepor ao pensamento do indivíduo. Entendia também que a propriedade não era um valor absoluto que justificasse a sua sobreposição aos interesses e direitos da comunidade em geral. Contribuir para uma distribuição mais justa das riquezas era, no seu entender, um dever de ética, tendo em vista o bem comum. Mas não aceitava que essa acção reguladora fosse exercida de forma violenta e imediata, mas sim lenta e progressivamente.

Agostinho da Silva ( 1906-96 )

Exerceu a sua acção como professor, pedagogo, ensaísta e filósofo, em Portugal e emigrou para o Brasil em 1944, depois de ter cumprido uma pena de prisão por motivos políticos. Leccionou em diversas universidades brasileiras e ajudou a fundar outras como Goiás, Paraíba, Santa Catarina e Brasília e, em 1969, regressou a Portugal passando a trabalhar como consultor do ICALP.
A sua posição política face ao regime salazarista foi de repúdio, pois a liberdade era para ele a mais importante condição para a realização do ser humano tanto individualmente como em sociedade. Concebia a filosofia como um instrumento indispensável para a transformação da vida. Considerava a vida como missão e serviço à comunidade e o “próprio sacrifício” como “a mais bela e mais valiosa recompensa”.De entre a sua obra destacam-se: “Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”, ”Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, ”Glosas” “ A Religião Grega” e outras.
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Delfim Santos (1907-66)
Discípulo de Leonardo Coimbra, licencia-se no Porto, frequenta como bolseiro a Áustria e depois a Inglaterra, seguindo, pouco tempo depois para a Alema-
nha onde trabalhou como leitor de Português. Ali deu conferências sobre a cultura portuguesa, literatura e história de Portugal, nomeadamente sobre o período dos descobrimentos. Na Alemanha contactou de perto com os filósofos alemães Nikolai Hartmann e Heidegger, e dedicou-se ao estudo dos filósofos, Hegel, Schelling, Nietzsche e Kierkegaard. Regressado a Portugal doutora-se em Coimbra e a partir de 1948 exerce as funções de Professor na Universidade de Lisboa. Na sua obra sobressaem, sobretudo, questões de natureza do conhecimento (o científico e o filosófico), limites da relação entre realidade e conhecimento, onde se notam as influências da filosofia alemã.
As sua obras mais conhecidas são : “Situação Valorativa do Positivismo”, Conhecimento
e Realidade”, “O Pensamento Filosófico em Portugal” e “Fundamentação Existencial da
Pedagogia”. Publicou estudos pedagógicos sobre a Paideia grega, sobre Maria Montessori
e Adolfo Coelho.
Outros nomes da filosofia portuguesa poderiam ser acrescentados aos aqui referidos,
mas a escolha feita limitou-se a apenas alguns dos que, a par das suas actividades
intelectuais, se envolveram directamente na acção política a favor da substituição do
regime monárquico pela Republica ou na melhoria das instituições republicanas.
Passado um século sobre a implantação da República, entendeu a consciência nacional que o grande aniversário seja comemorado com várias acções por todo o País. Trata-se de uma iniciativa que merece ser acarinhada. Mas ela não pode ter em vista apenas reavivar e dignificar este período da nossa vida política, relevando acções e factos positivos, ganhos e progresso socioeconómico e sociopolítico conseguidos pelo novo regime. Se for só isto, será muito pouco! Estas comemorações deverão servir também e sobretudo, para reflectir sobre metas há muito programadas e não atingidas. Devem ser aproveitadas como momento de análise das razões que explicam que cem anos depois da implantação da República continuemos tão distantes das demais nações europeias nos planos cultural, social e económico. As comemorações do centenário da República devem servir de incentivo aos políticos que, em nome do povo e pelo povo, chegam ao poder, para que
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honrem os seus compromissos e promessas assumidas aquando das corridas eleitorais. Que o exemplo de honestidade, modéstia, transparência e espírito de servir de alguns ilustres republicanos do passado renasça e sejam concretizadas as velhas aspirações de melhor justiça social, maior progresso e dignificação da pessoa humana.

NOS 65 ANOS DA LIBERTAÇÃO DE AUSCHWITZ

Tudo começou em 1929, com uma grande crise económica – a Grande Depressão de 1929 -, que abalou o mundo, provocando enormes conflitos sociais e políticos. Milhares de empresas entraram em falência, o desemprego aumentou de forma inimaginável, e deu-se uma súbita e imprevisível descida dos preços. Esta crise foi, em grande parte, responsável pelas condições de instauração do regime ditatorial na Alemanha, que defendia uma política expansionista.
O Partido Nazi (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores), chefiado por Adolf Hitler, contava com o apoio dos desempregados, da burguesia e dos opositores ao Partido Comunista, e manifestava-se através de actos de força e violência das suas tropas. Assim, a 30 de Janeiro de 1933, o Partido Nazi vence as eleições, sendo Hitler nomeado Chanceler (primeiro-ministro) alemão.

Com Hitler no poder, a Alemanha tornou-se cada vez mais agressiva, o Tratado de Versalhes, celebrado após a Primeira Guerra Mundial, e que impusera condições humilhantes à Alemanha, passou a ser ignorado e a Sociedade das Nações foi abandonada. Hitler preparava-se para agir violentamente, através de uma planificação meticulosamente preparada, que seria executada de forma brutal.

Assim, ainda em 1933, começou a construir-se o primeiro campo de concentração, em Dachau, no sul da Alemanha. Após a morte do Presidente da República alemão, Hitler passou a acumular os cargos de Chanceler e de Presidente da República, a partir do dia 2 de Agosto de 1934, tornando-se o Fuhrer (condutor, guia) da Alemanha.
A 15 de Setembro de 1935, estabeleceram-se as Leis de Nuremberga, que negavam aos Judeus a nacionalidade alemã e os proibiam de casar com alemães, tendo em vista a protecção da raça ariana.
A 7 de Março de 1936, Hitler ocupou e remilitarizou a zona alemã da Renânia, que havia sido desmilitarizada pelo Tratado de Versalhes. Em Junho desse ano, construiu-se mais um campo de concentração, o de Sachsenhausen, na Alemanha. A 25 de Outubro, Hitler celebrou um pacto militar com a Itália (Eixo Berlim-Roma) e, posteriormente, com o Japão, constituindo uma aliança de regimes ditatoriais, que ficou conhecida pelo “Eixo”.
A 15 de Julho de 1937, abriu mais um campo de concentração, o de Buchenwald.
A 13 de Março de 1938, a Áustria e a região dos Sudetas (província fronteiriça da Checoslováquia) foram anexadas à Alemanha e a 30 de Setembro deste ano, na Cimeira de Munique, a França e a Grã-Bretanha reconheceram esta anexação. No dia 1 de Agosto, foi criado o Departamento de Emigração Judaica, para forçar os Judeus a abandonar a Alemanha e a Áustria. A 28 de Outubro, 17 000 Judeus polacos residentes na Alemanha foram expulsos. Em Novembro, aconteceu a Kristallnacht (Noite de Cristal). Aqui, deram-se as primeiras grandes perseguições aos judeus, na Alemanha, Áustria e Região dos Sudetas. Os resultados foram devastadores, as tropas nazis destruíram mais de 200 sinagogas, 7500 lojas de Judeus foram roubadas, 30 000 Judeus do sexo masculino foram enviados para os campos de concentração já construídos (Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen). Mais tarde, os Judeus alemães tiveram que pagar um montante descomunal de dinheiro, pela destruição causada na Noite de Cristal, responsabilidade que lhes foi atribuída pelo governo de Hitler. Ainda em Novembro, todos os Judeus foram obrigados a entregar os seus negócios aos alemães e foram expulsos das escolas alemãs.
No dia 30 de Janeiro de 1939, Hitler, no Parlamento, afirmou “Se a guerra começar, isso significará o extermínio dos Judeus europeus”. As tropas alemãs ocuparam toda a Checoslováquia e exigiram que a Polónia cedesse territórios. A França e a Grã-Bretanha, até ao momento, tinham seguido uma política de apaziguamento em relação à Alemanha. Por medo ou passividade, foram fazendo concessões à custa de países mais fracos, não reagindo às ousadias de Hitler. Porém, a partir deste ponto, a França e a Grã-Bretanha decidiram que, ao próximo golpe de força da Alemanha, lhe declarariam guerra. Tentaram negociar um acordo com a URSS, mas, entretanto, Estaline tinha assinado um pacto de não-agressão com Hitler (Pacto Germano-Soviético). Quando, a 1 de Setembro de 1939, o exército alemão invadiu a Polónia, a Grã-Bretanha e a França declararam, então, guerra à Alemanha. Era o início da Segunda Guerra Mundial.
A 28 de Outubro, estabeleceu-se em Varsóvia, capital da Polónia, o primeiro ghetto, onde os judeus foram isolados do mundo exterior, separados por um muro. A partir de 23 de Novembro, os Judeus alemães e polacos passaram a ser obrigados a usar, no braço, uma estrela de David amarela.

Em Abril de 1940, a Alemanha ocupou a Dinamarca e a Noruega. Em Maio, invadiu os Países Baixos e a França. A França acabou por se render, em Junho, assinando o armistício com a Alemanha.
A 7 de Maio, no ghetto de Lodz, na Polónia, viviam 165 000 pessoas em apenas 1,6 km2. Foi também em Maio que abriu o mais conhecido campo de concentração, o de Auschwitz, na Polónia.
Tendo quase toda a Europa Ocidental dominada, Hitler pretendia conquistar o último grande resistente, a Grã-Bretanha. O confronto decisivo – a Batalha de Inglaterra – travou-se no espaço aéreo do Canal da Mancha e das Ilhas Britânicas, no Verão de 1940. A força aérea inglesa, auxiliada pelo radar (invenção recente), infligiu a primeira grande derrota à força aérea alemã, impossibilitando a entrada do exército alemão em solo britânico.
Em Novembro de 1940, viviam 500 000 pessoas no ghetto de Varsóvia, em condições deploráveis de fome e doenças.
Em Fevereiro de 1941, as autoridades alemãs começaram a cercar os Judeus polacos, transferindo-os para o ghetto de Varsóvia. Em Abril, o Eixo Berlim-Roma ocupou a Jugoslávia e a Grécia.
Em Junho, a Alemanha rompeu o Pacto Germano-Soviético e invadiu a URSS. A poderosa ofensiva das suas tropas aniquilou cerca de um terço do Exército Vermelho (exército soviético), que se encontrava mal organizado e mal equipado. Enquanto decorriam os combates na URSS, o Japão ocupava alguns territórios na China e na Indochina. Porém, os Estados Unidos tinham grande influência e poder no Extremo Oriente, e tentavam dificultar o rearmamento ao Japão.
Por isso, a 7 de Dezembro de 1941, o Japão atacou, de surpresa, a base naval americana de Pearl Harbor, no Havai. Metade da frota americana do Pacífico foi destruída. Este ataque levou a que os Estados Unidos da América entrassem na guerra, ao lado dos Aliados. Era a mundialização do conflito.
A 31 de Julho, o comandante das autoridades alemães, Heinrich Himmler, foi autorizado a dar início à execução da “Solução Final”, ou seja, o aniquilamento de milhões de Judeus.
Em Outubro de 1941, deu-se a abertura do campo de concentração Auschwitz II (Auschwitz-Birkenau), para o extermínio de Judeus, Ciganos, Homossexuais, Polacos, Russos, entre outros. A 8 de Dezembro, começaram as operações de extermínio no campo de concentração Chelmno, na Polónia.
Em 1942, começou a pôr-se cada vez mais em prática o plano de genocídio dos Judeus europeus.
A 17 de Março, o extermínio começou em Belzec, um campo de concentração polaco, onde, só em 1942, 600 000 Judeus foram mortos. Em Maio, no campo de Sobibor, na Polónia, começou o extermínio com gás Zyklon-B.
A 22 de Julho, abriu o campo de concentração polaco de Treblinka, com o objectivo de matar Judeus oriundos da Bélgica, Croácia, França, Holanda e Polónia.
Na União Soviética, continuava o confronto entre os exércitos Vermelho e alemão. Em Estalinegrado, os soviéticos resistiram, até à chegada do rigoroso Inverno russo, que em muito contribuiu para a derrota alemã.
Com a ajuda do “General Inverno”, os alemães foram cercados e aniquilados em Janeiro de 1943, numa vitória grandiosa considerada uma reviravolta na guerra. Em Maio, o Eixo foi derrotado em África. O caminho para a Europa estava aberto. Os Aliados desembarcaram na Sicília e libertaram a Itália.
Em Junho de 1943, Himmler ordenou a liquidação de todos os ghettos na Polónia. Em Outubro, deu-se a revolta armada no campo de concentração de Sobibor. Alguns prisioneiros conseguiram matar secretamente 11 dos guardas nazi e, embora as mortes tenham sido descobertas, cerca de metade conseguiu abandonar o campo.
A 15 de Maio de 1944, foram mandados 380 000 Judeus húngaros para Auschwitz. O dia 6 de Junho foi o “Dia D”. Os Aliados desembarcaram na Normandia (França), entrando em território francês.
No dia 15 de Agosto, deu-se a libertação da França e da Bélgica. A 7 de Outubro, os Judeus de Auschwitz revoltaram-se e fizeram um crematório explodir.
Os Aliados preparavam-se para esmagar a Alemanha. Os primeiros a chegar a Berlim foram os soviéticos. Com o avanço do exército russo, os nazis evacuaram Auschwitz.
A 27 de Janeiro de 1945, as tropas soviéticas libertaram Auschwitz. As estimativas apontaram para 2 milhões de mortos, entre eles 1,5 milhões de Judeus.

A 30 de Abril, Hitler suicidou-se e, a 8 de Maio, a Alemanha rendeu-se. Ainda em 1945, o Japão foi atacado pela URSS e foi vítima das duas primeiras bombas atómicas, lançadas pelos Estados Unidos da América. Primeiro, a 6 de Agosto, deu-se o bombardeamento de Hiroshima. Depois, a 9 de Agosto, o de Nagasaki. O Japão rendeu-se a 2 de Setembro. A Segunda Grande Guerra chegara, finalmente, ao fim. Tinha provocado cerca de 70 milhões de mortos, a destruição de cidades, caminhos-de-ferro, pontes, estradas, vidas.

Os pressupostos raciais – a supremacia da raça superior

Segundo a doutrina nazi, a raça ariana era considerada a raça superior. Os arianos eram um povo indo-europeu, de quem os alemães se consideravam descendentes puros. Numa hierarquia de raças, os europeus brancos ficariam sempre no topo. Contudo, segundo os nazis, as culturas degeneravam quando se misturavam raças distintas. E acreditava-se que, no sul da Europa, as pessoas eram uma mistura de raças, de europeus com muçulmanos não europeus, do outro lado do Mediterrâneo.
Por outro lado, os europeus do norte continuavam puros. Por isso, a raça ariana encontrar-se-ia melhor preservada nos países do Norte da Europa do que em qualquer outra parte do Mundo. Para o nazismo, o ideal racial era o nórdico louro de olhos azuis. Os europeus de leste seriam uma parte degenerada e inferior da raça ariana.
E o povo superior, o povo alemão, tinha sido enxovalhado pelos povos inferiores, aquando da realização do Tratado de Versalhes. Era chegado o momento da vingança, o tempo de pôr fim às exigências humilhantes de um tratado humilhante.
Porém, passados 65 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há algo que continuo sem perceber. Como é possível que alguém como Adolf Hitler pudesse defender a superioridade de uma raça em que ele próprio não encaixava? Uma raça que defende um perfil físico de pessoas altas, louras e de olhos azuis? Precisamente tudo o que Hitler não era. Se isto não é a defesa de um princípio da mais absoluta hipocrisia, então não sei o que seja.

No fundo, o que os nazis defendem é uma superioridade genética. Mas como é possível afirmar a minha superioridade, meramente baseada nos meus genes? Ao pesquisar sobre a raça ariana, encontrei, uma afirmação interessante:

“Se um homem branco tiver um filho com uma mulher negra, qual será a cor da pele do rebento? (na maioria dos casos...);
Se uma mulher de olhos azuis tiver um filho com um homem de olhos castanhos, qual será a cor dos olhos do rebento? (na maioria dos casos...);
Se um homem nórdico tiver um filho com uma mulher latina, qual será a cor da pele do rebento? (na maioria dos casos...)”[1].

Constatei quão simples e curiosas são as respostas a estas perguntas. De facto, se existe alguma superioridade entre raças, e se essa superioridade tem a ver com o “poder” dos genes, então a raça morena, de pele e olhos escuros é claramente superior.
Somos todos humanos, e não mais do que isso. E se eu sou superior a outra pessoa, isso é por causa das minhas atitudes, das minhas capacidades, do meu respeito pelo outro, da minha solidariedade, da minha tolerância. Por isso, acredito que, em termos de superioridade, não há raça mais inferior do que aquela que mata pessoas de outras raças, sem razão plausível, porque não há nenhuma razão plausível. Se alguém baixo, moreno e de olhos castanhos defende a superioridade de uma raça constituída por indivíduos altos, louros e de olhos azuis, mais não faz do que inferiorizar-se e menosprezar-se a si próprio. E foi isso que Hitler fez!

A Solução Final – os campos de extermínio

Os nazis usavam frequentemente eufemismos para dissimular a natureza real dos seus crimes. Sim, o termo “Solução Final” soa bastante melhor do que “genocídio do povo judeu”. Mas era exactamente isto que “Solução Final” queria dizer, aniquilar totalmente uma raça, limpar as terras alemãs do povo judaico, porque eram considerados a raça mais inferior de todas as raças. Os nazis defendiam que os judeus controlavam, exploravam e prejudicavam as economias dos países onde viviam.
Mesmo que isso pudesse ser verdade, continua a não ser razão para os exterminar e também não explica o porquê da perseguição aos homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová, ou a todos os outros grupos minoritários que não aceitassem o regime.
Os nazis criaram campos de extermínio para que os assassinatos em massa fossem mais eficazes. Ouvimos falar em campos de concentração, mas os campos de extermínio eram algo diferente, ainda mais horrível e atroz. Os campos de concentração serviam, principalmente, como centros de prisão e de trabalho forçado.
Muitas vezes, os indivíduos inicialmente detidos nestes campos eram, posteriormente, enviados para campos de extermínio. Estes campos de extermínio eram, quase exclusivamente, campos de morte, como também eram designados (um nome que assenta perfeitamente!). Nestes campos, a morte pairava no ar, a única coisa viva era a morte. O primeiro campo de extermínio foi o campo de Chelmno, em Warthegau (território polaco anexado à Alemanha em 1939), criado em Dezembro de 1941.
O método de execução mais comum nestes campos era o asfixia pelo gás Zyklon-B, utilizado nas câmaras de gás, isto apesar de muitos prisioneiros terem sido mortos por fuzilamento ou outros meios. As autoridades alemãs consideravam os campos de extermínio como ultra-secretos. Para destruir todos os rastos das operações de genocídio, unidades especiais de prisioneiros denominadas Sonderkommandos, compostas primordialmente por judeus, eram forçadas a remover os corpos das câmaras de gás e a cremá-los.
Depois, as cinzas eram enterradas ou dispersas. Deste modo, a famosa “Solução Final para o problema judaico” foi posta em prática nos campos de extermínio, a partir de 1941, onde cerca de metade dos 6 milhões de judeus assassinados no holocausto, foram mortos, sem dó nem piedade.

Os testemunhos

Muitas das memórias que temos do que foi o holocausto devem-se a testemunhos de pessoas que viveram esta realidade desumana e partilharam as experiências daquele período da história. Encontrei um site como imensos vídeos interessantíssimos de pessoas a contarem os seus episódios, as suas histórias do temo do holocausto. Decidi, então destacar alguns desses vídeos e falar um pouco sobre eles.
Os pais de Charlene Schiff eram líderes da comunidade judaica local de Horochow, na Polónia. Charlene era apenas uma criança quando, em 1941, foi obrigada, juntamente com a sua mãe e a sua irmã, a viver num ghetto construído pelos alemães, em Horochow.
O seu pai havia sido preso pelas autoridades alemãs. Ela nunca mais o viu. Em 1942, Charlene e a sua mãe conseguiram fugir do ghetto. A sua irmã tentou esconder-se noutro lugar, nunca mais se soube dela. As duas viveram nas florestas durante bastante tempo, escondidas. Um dia, Charlene acordou e descobriu que a sua mãe havia desaparecido. Assim sendo, teve que sobreviver sozinha.
Como a própria afirma, com lágrimas nos olhos, “quando estamos com fome e completamente desmoralizados, tornamo-nos criativos. (...) Eu comi minhocas. Eu comi insectos. (...) Eu bebi água de poças (...) E comer ratos crus, sim, eu comi. Com certeza, eu queria muito, mesmo muito, sobreviver, porque fiz coisas indescritíveis. De alguma forma eu sobrevivi. Não sei porquê. Mas sobrevivi.”[2]
Benjamin Meed nasceu no seio de uma família judia religiosa. Após a Alemanha ter ocupado Varsóvia, Ben fugiu para o leste da Polónia, que estava ocupado pelos soviéticos. Entretanto, decidiu voltar para a sua família, que se encontrava no ghetto de Varsóvia.
Ajudou pessoas a fugirem do ghetto e fingiu ser um polaco não-judeu. No seu testemunho, ele conta a sua primeira experiência anti-semita, a qual o marcou para a vida. “Lembro-me dos primeiros dia, quando os alemães chegaram.
Foi um desfile (...), onde os alemães vitoriosos marcharam sobre a Polónia. Nessa época, o mundo estava mais interessado em encontrar um pedaço de pão. (...) Alguns camiões chegaram à esquina, não muito distante de onde eu morava, e eles estavam a distribuir pão. (...) Ao olhar para os camiões, os nossos olhos brilharam. Eu estava à espera de conseguir um pedaço de pão e acabei por encontrar um dos meus vizinhos. Ele disse-me “O que é que está a fazer aqui? Isso é pão para os polacos”. Respondi que estava lá por isso mesmo. E, então, ele respondeu-me: “Mas você é judeu”. Esse momento chocou-me muito, nunca irei esquecer.”
Chaim Engel era um prisioneiro do campo de Sobibor. O resto da sua família morreu neste mesmo campo. Em 1943, aquando da revolta de Sobibor, alguns detidos mataram vários guardas alemães, permitindo a fuga de muitos dos prisioneiros do campo. Chaim matou um guarda e conseguiu escapar com a sua namorada, Selma.
O seu testemunho conta, exactamente, esta fuga de Sobibor. “Nós sabíamos que já havia muitos alemães mortos. Já sabíamos o que estava a acontecer. (...) De algum modo, tivemos sorte. (...) Tudo aconteceu de acordo com o plano até chegarmos ao portão principal. As pessoas corriam por todos os cantos. A esta altura, todo o campo sabia o que estava a acontecer. Alguns correram para as minas e foram mortos. Algumas pessoas não correram. Elas desitiram. Esperaram até serem mortas.
Mas as pessoas mais novas e as suficientemente corajosas para correr, fugiram. Então, eu vi o Sargento Franzel com uma metralhadora e ele começou a disparar. Eu queria parar. (...) Pensei que poderia morrer. Talvez houvesse saída. Então, eu puxei a mão da Selma e , de alguma forma, nós conseguimos atravessar o portão.”[3]
A família de Abraham Lewent ficou confinada ao ghetto de Varsóvia. No seu testemunho, Abraham conta as condições miseráveis em que se vivia no ghetto. “A fome no ghetto era tão grande, tão horrível, que as pessoas deitavam-se nas ruas e morriam, as crianças pequenas pediam esmola e, quando se saía de manhã, via-se alguém morto deitado no chão, coberto por jornais. (...)
E todo o dia milhares morriam de subnutrição, porque os alemães não davam nada para as pessoas comerem. Não se podia entrar e comprar qualquer coisa. Se não tinha, morria, e era assim mesmo.”[4]
Alan Zimm foi deportado para o ghetto de Lodz, na Polónia, em 1942, onde trabalhava na distribuição de alimentos. Com o avanço do Exército Vermelho sobre a Alemanha, os prisioneiros foram transferidos para o campo de Bergen-Belsen, em 1945, de onde as forças britânicas os libertaram em Abril desse ano.
Alan conta-nos o episódio em que ele e os outros prisioneiros souberam que estavam livres e as emoções que sentiram nesse momento.
“Às nove horas, o portão do campo abriu-se e podia ver-se ao longe um jipe com quatro militares ingleses. (...) E eles disseram: “Meus caros amigos, (...) de agora em diante, vocês estão livres. Vocês são libertados pelas forças aliadas. E os alemães não têm mais nada a ver convosco.” Estávamos todos a chorar. Foi uma experiência emocionante. É muito difícil de descrever. As pessoas saltavam, abraçavam-se e beijavam-se.”[5]


Comentário ao filme Noite e Nevoeiro, de Alain Resnais

Alain Resnais é um cineasta francês e, no seu filme Noite e Nevoeiro, descreve-nos a realidade dos campos de concentração sem a tentativa de “dourar a pílula”, ou seja, de uma maneira crua e objectiva, não se preocupando com tabus. É um documentário perturbante e muito sensível, na medida em que, mantendo uma voz calma e aparentemente despreocupada, o narrador consegue utilizar a mais contundente denúncia, mas também a ironia e até o humor negro para nos esclarecer, aterrorizar, angustiar e emocionar.
É um tipo de documentário a que não estou habituada, em que uma descrição simples de um campo concentração nos transporta para sítios bem mais complexos. Alain Resnais põe-nos a pensar, mas fá-lo de uma forma subtil. E a verdade é que os campos de concentração foram construídos por cima dos espaços mais simples: “Uma paisagem tranquila, uma planície com voos de corvos, feixes de ervas, uma estrada onde passam carros, camponeses”, subitamente são substituídos por imagens bárbaras a preto e branco de campos de concentração, onde homens, mulheres e crianças são cruelmente torturados, mutilados e tratados como lixo.
Alain Renais não se preocupou em embelezar a realidade. Ela não era bela, nem deve ser pintada como tal. Dá-nos a conhecer um mundo de humilhação, de desumanidade, de indiferença, onde as pessoas são numeradas através de uma tatuagem; onde, “sob o pretexto da higiene, a nudez despe os prisioneiros de toda a sua dignidade, de uma só vez”; onde existem valas atulhadas de corpos, como se de uma lixeira se tratasse. É perturbador a um tal nível, que nem os longos filmes sobre o holocausto conseguem ser. Se o objectivo de Resnais era um documentário repleto de imagens absolutamente inesquecíveis, penso que o seu objectivo foi plenamente cumprido.
Além disso, ao acompanhar as imagens com uma música apropriada, que recorda um pouco o estilo dos filmes de suspense e terror, o efeito ainda é mais marcante. O título é outro dos aspectos intrigantes relativamente a este filme. A noite e o nevoeiro transportam-nos, desde logo, para a falta de luz, quer porque ela não exista mesmo, quer por estar ofuscada. A noite é a morte, as trevas, são os crimes cometidos impunemente.
O nevoeiro expressa de algum modo, o transporte e o despejo dos prisioneiros para os campos de extermínio durante a madrugada, para que não fossem vistos e para que não vissem bem o espaço que os aguardava, e por isso, ignorância dos judeus face ao que lhes estava destinado no futuro. Eles não sabiam bem o que os esperava, não conseguiam ver claramente a realidade e, os que o tentavam, acabavam mortos.
O documentário não podia terminar de uma maneira melhor: ““Eu não sou o responsável”, diz o Kapo. “Eu não sou o responsável”, diz o guarda. “Eu não sou o responsável”. Então, quem é o responsável?”. Excelente pergunta, para uma resposta que também não parece difícil. Criminosos com coragem para matar milhões, como podem não ter coragem para se darem como culpados? O mais curioso é que, de facto, ninguém admitia a responsabilidade.
É como se a guerra nem tivesse acontecido. Onde antes se encontravam os campos de concentração, agora voltaram as paisagens tranquilas e os feixes de erva. Mas a guerra aconteceu. E se não forem os campos de concentração a comprová-lo, são documentários como este, que brilhantemente não nos permitirão o esquecimento.


Comentário ao filme O Pianista, de Roman Polanski

Por alguma razão, há qualquer coisa em O Pianista que continua a atrair-me, como se de um íman se tratasse. É a terceira vez que vejo este filme, e nem por isso se torna mais fácil, menos doloroso, menos apaixonante. Embora sobre o holocausto, não é um filme que nos transporte à realidade dos campos de concentração. Ficamo-nos pela realidade do ghetto de Varsóvia, que nem por isso é melhor. Talvez erradamente, tenho a percepção de que os filmes resultam melhor quando são mais do que uma simples representação dos factos. E este filme é bem mais do que isso. Primeiro, porque o holocausto é uma realidade inesquecível.
Segundo, porque Roman Polanski, o realizador deste filme, viveu ele próprio em plena Segunda Guerra Mundial. Mais especificamente, passou parte da sua infância no ghetto de Cracóvia, onde a sua mãe morreu. Terceiro, porque a história do filme é verídica. Wladyslaw Szpilman conta no seu livro Morte da Cidade as suas memórias do ghetto de Varsóvia, e a maneira como conseguiu sobreviver para contar a história. E foi este livro que serviu de suporte para a realização do filme.
E é esta experiência pessoal de Polanski e Szpilman que torna este filme tão marcante. Só alguém que viveu o holocausto é que pode ser tão cuidadoso quanto a pormenores que fazem realmente a diferença. Não consigo ficar indiferente ao ver um idoso inválido numa cadeira de rodas a ser atirado pela janela só porque não se levantou quando lhe ordenaram que o fizesse (claro que não conseguia), e quando vêm outras pessoas para o ajudar, são mortas com a maior das indiferenças.
Este filme atinge-nos como um murro no estômago, proporciona-nos um sentimento de revolta interior que eu considerava impossível. Costuma dizer-se que “não há bela sem senão”. Fico feliz por dizer que, em O Pianista, não há senão sem bela. Ou seja, também há uma parte muito positiva subjacente a este filme. São situações como o holocausto que quase nos fazem perder a fé na humanidade. Por maior ou menor que ela já fosse, quando vejo o que realmente o homem é capaz, a crueldade que pratica e a sua apatia perante essa crueldade, só consigo pensar que, se possivelmente, o homem é mesmo e apenas isto.
Talvez o verdadeiro homem seja um ser capaz de cometer atrocidades desmedidas, sem sentimento de culpa aparente. Talvez o verdadeiro homem esteja destinado à guerra, a milhões de mortos. “Deixei de acreditar em Deus”, afirmava um judeu no filme. É triste pensar que são os homens que acabam com a fé das pessoas. Contudo, depois aparece uma personagem como o Wilm Hosenfeld, que salva Szpilman e restaura um pouco dessa fé perdida.
Quem sabe, os homens, por mais cruéis que possam ser, ainda tenham qualquer coisa lá dentro, um sentimento de bondade que os leve a agir humanamente; o coração palpitante fala mais alto e são levados num acto altruísta e genuinamente bom que nunca pensariam poder ter. É isto o mais importante neste filme para mim. É verdade que as memórias do holocausto nunca são demais. Mas, perante filmes sobre este tema que contam sensivelmente todos a mesma história, este gira à volta de um instrumento musical – o piano.
O piano é, realmente, um instrumento formidável. Tem aquela capacidade especial de, ao mesmo tempo que entoa Chopin, denunciar barbaridades chocantes. Claro que os dedos talentosos de Wladyslaw Szpilman também ajudam para que isto seja possível. É um filme que requer uma sensibilidade muito característica, que nos leva a sítios perturbadores da nossa mente. Talvez eu ainda não tenha essa sensibilidade. De qualquer modo, é isto o que de mais representativo O Pianista significa para mim. Mais do que um filme, é uma melodia. Uma melodia triste, violenta, atroz. Mas também uma melodia de esperança, esperança no homem, esperança na humanidade.


Sobre a experiência do holocausto – o meu testemunho

No dia 14 de Abril de 2010, houve na nossa escola uma sessão sobre o holocausto. Um historiador veio para explicar este tema e tirar dúvidas aos alunos. Uma colega do 11º ano decidiu perguntar-lhe qual a sua opinião face às teorias que negam o holocausto. Foi uma pergunta que me deu que pensar. Tudo o que sei sobre o holocausto vi em filmes ou em imagens. Ainda assim, eu acredito no holocausto.
Não estava lá para ver mas talvez esta seja só mais uma daquelas coisas que eu não preciso de ver para acreditar. Acredito que houve um momento na história da humanidade em que milhões de judeus foram mortos, sem dó nem piedade, só porque alguém acreditava que se tratavam de uma raça inferior. Porém, há uma parte de mim que consegue compreender o porquê de não acreditar no holocausto.
Não sei muito sobre essas teorias que negam o holocausto e o porquê de o fazerem, mas seria bom pensar que as pessoas que não crêem nesta atrocidade talvez fossem pessoas que têm fé, que têm esperança na humanidade e que não conseguiriam aceitar que o homem pudesse de modo algum cometer uma crueldade conduzisse milhões à morte, que destruísse famílias e arruinasse a vida até daqueles que sobrevivem. Mas não, os defensores destas teorias dizem que o holocausto foi uma ficção, que nada de brutal ou significativo aconteceu naqueles lugares, e isso é tão horrível quanto recordar os nazis quando diziam: “eu não sou responsável!”.

Mas será que devemos ter esperança numa humanidade intolerante, preconceituosa, extremista e violadora dos direitos humanos? Espero bem que sim. Acho que, quando homem deixar de acreditar no bem da humanidade, será o fim. No entanto, e sob pena de a esperança morrer, é bom que todo o mundo ouça a história ( e as histórias) do que foi e dos que viveram o holocausto. Não podemos esquecer este episódio terrível e sangrento da história do homem, temos que recordar aqueles que morreram em prol de uma crença injusta e extremista que só deve servir como lição, como denúncia do comportamento que devemos ter no nosso dia-a-dia.
Pois só mantendo este acontecimento vivo na nossa memória é que podemos evitar que outro igual ou pior venha a acontecer.
Sei que, felizmente, a minha visão do holocausto será sempre mais superficial do que a de um judeu sobrevivente ou a de um soldado combatente na respectiva guerra. Mas se eu sei alguma coisa do que foi este acontecimento cruel, tal deve-se ao facto de haver gente que não admite que ele seja apagado das nossas memórias (e de fazer parte do programa de História do 9º ano!).
São episódios como o holocausto que quase me fazem perder a fé nas coisas boas que o homem pode fazer. O homem tem a capacidade de tornar capaz o que parece incapaz, possível o impossível, imaginável o inimaginável. É pena que ele, constantemente, use esta disposição para o mal. Porém, acredito que, por mais desumano que o holocausto tenha sido, serviu como uma oportunidade. “Não vamos repetir” deve ser o lema a seguir.


Caracterização do valor da tolerância

Quando penso em tolerância, a primeira coisa que me vem à cabeça é, possivelmente, aceitação.(?) Longe disso! Se tolerar for respeitar e aceitar todos os comportamentos do outro, por mais imorais e intolerantes que possam ser, então não há nada para tolerar. A tolerância não é uma atitude passiva perante a indiferença, não é sinónimo de condescendência, apatia ou acrítica perante os outros. Então o que é a tolerância?
Primeiramente, tolerar é reconhecer a liberdade de existir do outro; reconhecer que esse outro possa ser diferente na maneira de agir, pensar, sentir e se relacionar; reconhecer, no fundo, a liberdade incondicional de ser humano. Mais profundamente, tolerar é estar aberto à diferença, disponível para o diálogo e para o raciocínio, para a argumentação.
O filósofo inglês John Locke foi o primeiro a teorizar sobre esta questão da tolerância, colocando a seguinte questão: “Teremos o direito de impor aos outros as crenças que eles devem adoptar e policiar a prática das mesmas?”[6]. A sua resposta é clara e assenta no facto de nós ignorarmos mais do que conhecemos. Aliás, à medida que o conhecimento avança, descobrimos, muitas vezes, que ignoramos o que julgávamos saber. Por isso, ninguém pode impor autoritariamente verdades absolutas, elas não existem. Deste modo, a convicção tolerante define um critério muito interessante: a verdade não se impõe, propõe-se.
E isto sim é tolerância. Não é impor a minha verdade ao outro; não é aceitar a verdade do outro acriticamente. É respeitar a diferença, na medida em que a verdade do outro possa ser melhor que a minha, e possa, inclusive, ser uma fonte de enriquecimento. É também criticar a verdade do outro, se, depois dos argumentos apresentados, perceber nela um comportamento intolerante.
Assim sendo, será possível ser tolerante com o intolerante? Provavelmente não, nem se deve. A tolerância não é passiva, não é condescendência, não é incondicional. Por isso, as atitudes intolerantes, que vão contra a moral dos indivíduos, não devem ser toleradas, na medida em que os argumentos utilizados para as defender não são, de modo algum, concebíveis.
O valor da tolerância é, provavelmente, o mais fundamental da sociedade actual. É este valor que permite a evolução, o progresso, o enriquecimento individual e colectivo. Porque só quando duas pessoas se dispõem a ouvir uma à outra, a trocar ideias e a apresentar seriamente os seus argumentos é que podem chegar a uma condição de entendimento. Sem a tolerância, a humanidade perde o rumo.
Com ela não somos mais um bando de selvagens que lutam pela sua razão a qualquer preço, sem qualquer esforço para percebermos as razões dos outros. É por isso que é tão importante estimular as atitudes de tolerância. Tal pode contribuir para resolver muitos conflitos e erradicar muitas situações de violência. Cabe a cada um nós (não só aos políticos!) espalhar e transmitir a mensagem da tolerância. Só assim podemos contribuir para que a humanidade se entenda entre si, e evite destruir-se a si própria.

Modelos contemporâneos de tolerância

Um dos modelos contemporâneos de tolerância é o multiculturalismo, ou pluralismo cultural. Este modelo defende a diversidade cultural, baseando-se no facto de existirem diferentes culturas, com valores, comportamentos e costumes diferentes umas das outras. Existem várias posições face à diversidade cultural.
Apesar do conceito de multiculturalismo ser relativamente recente, a diversidade cultural não é um fenómeno exclusivo da actualidade. Só que agora, nós assumimos e reconhecemos a diversidade cultural como uma característica positiva da própria natureza humana. Actualmente, já se vai tendo o pensamento de que é na diversidade e na diferença que as culturas ganham relevância. O multiculturalismo é, em primeiro lugar, um facto, na medida em que é inegável a existência de uma multiplicidade de padrões de cultura.
É, em segundo lugar, uma forma de encarar a diversidade, procurando estabelecer possíveis valores, regras e comportamentos que permitam a coexistência das diferentes culturas. Perceber este conceito de pluralismo cultural não é muito difícil se pensarmos em cidades como Lisboa, Nova Iorque ou Paris, onde a realidade multicultural é bastante evidente. Estas cidades são também um excelente exemplo de como é, efectivamente, possível que indivíduos de diferentes culturas possam coexistir num mesmo espaço social, entendendo-se entre si (na maioria das vezes!).
O multiculturalismo defende o direito à diferença. Assim sendo, apela ao respeito e à tolerância, o que nem sempre é fácil. Por este motivo, a diversidade cultural leva, muitas vezes, a conflitos entre culturas, por estas não se conseguirem entender quanto a valores ou normas a adoptar.
Outros modelos importantes de tolerância são o comunitarismo e o liberalismo, que têm gerado vários debates entre si ao longo do tempo.
Quanto ao comunitarismo, este surgiu por volta dos anos 80 e é defendido por filósofos como Charles Taylor, Alasdair MacIntyre e Michael Walzer. Segundo esta concepção, a comunidade e o colectivo são a base da solução para um mundo melhor. Os comunitaristas acreditam que o ser humano só se realiza mediante o reconhecimento do outro e o contacto com a sociedade. Para Charles Taylor, o reconhecimento das diferenças e a defesa da cultura representam metas que transcendem as satisfações individuais.
Por outro lado, o liberalismo, defendido por filósofos como John Rawls e Ronald Dworkin, vê o indivíduo, dotado de liberdade, racionalidade e autonomia, como a chave para um mundo melhor. Ou seja, antes do indivíduo pertencer a uma comunidade, ele é um sujeito com direitos fundamentais que vão para além da própria comunidade. De qualquer modo, quer sejam os direitos individuais ou os culturais que estejam em questão, o objectivo de ambas as concepções é garantir o respeito e a tolerância face aos direitos, face à diferença.
Carolina Curto – 10º4

Filmes a ver sobre o tema:
Noite e o Nevoeiro(1955) de Alain Resnais
Shoah (1985) de Claude Lanzman (documentário)
A Lista de Shindler (1993) de Steven Spielberg
Sunshine (1999) de Istvan Szabo
The Grey Zone(2001) de Tim Nelson
O Pianist (2002) de Roman Polansky
A Queda(2004) de Oliver Hirschbiegel
Sophie Scholl- Os Últimos Dias (2005) de Marc Rothemund
A Leitora(2008) de Stephen Daldry


Alguns Links de interesse :
http://www.ushmm.org/
http://www.yadvashem.org/
http://www.science.co.il/holocaust-museums.asp
http://holocausto-doc.blogspot.com/2007/08/testemunho-de-albert-speer-sobre-o.html
http://dossiers.publico.clix.pt/dossier.aspx?idCanal=1383
[1] http://omeio.blogspot.com/2005/06/raa-ariana.html
[2] http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_oi.php?MediaId=349
[3] http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_oi.php?MediaId=893
[4] http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_oi.php?MediaId=876
[5] http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_oi.php?MediaId=878
[6] Locke, John – Carta Sobre a Tolerância

Cronologia do Holocausto




















































































terça-feira, 18 de maio de 2010

Valorização do património cultural


No dia 7 de Fevereiro, foi inaugurada uma exposição na escola, que teve a duração de uma semana, a qual teve como tema “As sete Maravilhas de Coimbra”. A iniciativa foi tomada pelos alunos de um grupo de Área de Projecto do 12º8 (Diogo Rodrigues, Francisca Cordeiro, Mariana Marques e Pedro Maranha) que, previamente elegeram sete locais que consideraram de destaque em Coimbra.
A exposição teve como objectivo dar a conhecer monumentos, jardins e edifícios relevantes da cidade, como forma de valorizar o património cultural e incentivando à dinamização deste.
Nesta exposição o destaque foi para as fotografias que representavam cada uma das Maravilhas, a par de objectos alusivos a estas como livros, traje académico e, ainda, doçaria conventual. No decorrer da exposição, também, o fado de Coimbra foi uma constante, acompanhado pela letra de um deles à entrada, o que o Diário de Coimbra também mencionou na notícia que fez sobre a exposição.
A finalidade da iniciativa foi cumprida, uma vez que conseguimos divulgar a riqueza cultural da cidade e o desafio de preservar e dinamizar Coimbra foi lançado.
A par desta exposição, o grupo realizou uma visita guiada ao Jardim Botânico, no dia 21 de Abril, com o objectivo de pôr os alunos em contacto com esta riqueza natural, tão importante para o desenvolvimento de espécies em Portugal e na Europa. A visita foi muito interessante, houve a oportunidade de conhecer locais do Jardim interditos ao público como a Mata, a Estufa Fria e as Estufas Quentes.
O objectivo geral do grupo está a ser cumprido e pretende continuar a fazer com que os alunos não se esqueçam das suas origens, de onde são e o que têm.


Os alunos do grupo:
Diogo Rodrigues
Francisca Cordeiro
Mariana Marques
Pedro Maranha

Criminalidade em exposição no José Falcão


No âmbito da área curricular não disciplinar de Área de Projecto, um grupo de alunos da turma 8 do 12º ano organizou uma exposição sobre “Criminalidade”, entre os dias 12 e 16 de Abril. Para além de dados estatísticos oficiais, foram ainda apresentados os resultados dos inquéritos realizados no inicio do ano, informações acerca das várias forças de segurança, medidas ou soluções para a problemática do crime, recortes de jornais locais que demonstram a frequência e gravidade do problema, e ainda uma entrevista realizada a uma professora de um estabelecimento prisional. Para o final do ano está agendada a apresentação das conclusões do trabalho realizado, as quais poderão ser consultadas na internet, no endereço: http://www.criminalidade-aprojecto.blogspot.com/ .

domingo, 18 de abril de 2010

ESCOLA J. FALCÃO EVOCA AS VÍTIMAS DO HOLOCAUSTO




De 12 a 16 de Abril decorre, na Escola Secundária José Falcão, uma homenagem evocativa das vítimas do Holocausto. Com o seu título, O Dever de Memória, pretende-se que os jovens compreendam as causas desse infausto e dramático acontecimento, e que reflictam sobre as suas consequências.
O filme, A Fuga de Sobibor, é visionado por todos os alunos. Complementarmente, está patente uma exposição sobre o tema na sala do átrio, aberta à comunidade. Durante todos os dias em que decorre esta evocação, no final da exibição do filme haverá lugar a debate, dinamizado pelo Professor Doutor Reis Torgal (dias 12 e 14) e pelo Dr. Alfredo Reis. (dias 13,15 e 16)

No primeiro dia, Reis Torgal explicou a lógica do nazismo e deixou bem claro que este problema não é exclusivo do passado, e que, se houver condições, ele pode ressurgir a qualquer momento e em qualquer lugar. Alunos e professores colocaram questões inquietantes a que o palestrante respondeu de uma forma igualmente problematizadora

quinta-feira, 15 de abril de 2010

ENTREVISTA COM ARTUR RIBEIRO, Argumentista da série da TVI “Destino Imortal”



Garras: O êxito dos filmes da série Twilight fez ressurgir o interesse pela secular temática do "vampirismo". Viu os filmes? E o que pensa da abordagem cinematográfica escolhida para a adaptação da obra de Stephenie Meyer?

Os livros e filmes da saga Twilight foram um fenómeno devido à reciclagem "teenage-american-dream" que é vinculada através da fabulização dos vampiros como os novos "good-bad-boys". Se analisarmos a estrutura de Twilight encontramos a velha história clássica de romance adolescente de liceu, em que a menina que é diferente das outras -- a nova aluna, vinda de fora, tímida, modesta, etc -- fica com o rapaz mais apetecido e mais cool do liceu: no caso, o vampiro Edward (chegando aqui ao ponto de este vampiro em vez de morrer ao sol fica a brilhar com a pele cheia de "diamantes dourados" -- bem diziam que "diamonds are the girl's best friend"). Neste caso, os alunos vampiros são os mais cool, mais bonitos, mais ricos, conduzem os melhores carros, têm a melhor roupa, e por isso, tirando o facto de beberem sangue e serem imortais, são iguais aos outros paradigmas dos filmes para adolescentes americanos, aqui com uma mais valia pois podem dar grandes saltos, parar veículos com as mãos e baterem de forma sobre-humana nos rapazes maus salvando as donzelas em risco de serem violadas (se recordarmos os vampiros de outros tempos, eram eles que violavam as donzelas...). Por outro lado, sobretudo na versão em livro, o texto é criado do ponto de vista da adolescente (a escrita é mesmo adolescente, até no mau sentido de ser fraquinha como escrita) e isso ajudou a conquistar as milhões de fãs na sua maioria jovens raparigas que são igualmente quem mais vai ao cinema e quem mais lê.

Garras: A abrangência das referências cinéfilas sobre o vampirismo é já longínqua, desde o incontornável Nosferatu(1922) de F. W. Murnau, até aos mais recentes Dracula (1992) de F. F. Coppola, ou à Entrevista com o Vampiro(1994) de Neil Jordan. Sei que fez uma alargada pesquisa sobre o tema. Quais foram os suas fontes de inspiração?

Quando me propuseram escrever uma série de vampiros a minha primeira preocupação foi o que poderia escrever de original num género já tão rico em narrativas, com três séculos de tradição e várias obras-primas. Por isso, não só fui rever alguns dos filmes referidos, como também fui espreitar as actuais séries de televisão de sucesso como o True Blood ou o Vampire Diaries. Sentindo que seria difícil encontrar algo que não seja de uma forma ou de outra abordado em algumas destas referências, fui pesquisar a história e foi lá que se fez luz, ao encontrar a figura do Dampiro.

Garras: A ideia da figura do dampiro é pouco usual dentro deste imaginário cinéfilo. O que o levou a introduzir este tipo de conceito no argumento?

Ao pesquisar a história das lendas dos vampiros encontrei a referência no folclore dos balcãs a esta figura de um filho de vampiro com mulher humana, que podia ter os poderes dos vampiros mas não as suas fraquezas, e por isso tornavam-se caçadores de vampiros natos. Embora naturalmente lendária, esta figura era encarnada na época por espertalhões que se faziam passar por dampiros e eram contratados pelas populações aterrorizadas por vampiros para os destruir. Contudo, o que me interessou na figura foi o seu lado Freudiano/Edipiano do filho renegar a sua descendência e tornar-se o assassino do próprio pai, ou pelo menos da sua espécie. Ao mesmo tempo, como me pediam também uma história de amor, descobri aqui um elemento que poderia ser original e interessante: a sensação de amor à primeira vista que o dampiro Miguel sente pela vampira Sofia (ainda ambos não sabendo o que outro é, e no caso do Miguel o que ele próprio é) não é mais que um mecanismo de defesa animal, e as sensações que passam entre os dois à partida não será de amor mas de ódio e destruição. Esta confusão entre o amor e ódio pareceu-me um ponto de partida diferente para um romance e daqui lançamo-nos -- com a Cristina Silva, minha co-argumentista -- para a história desta mini-série com um conflito que nos pareceu poder dar um bom desenvolvimento.

Garras: O actual tratamento do vampirismo no cinema, em particular da série Twilight, é frequentemente referido como sendo demasiado light, longe do conceito mais sombrio, sangrento e sexual a que o tema sempre esteve associado. Concorda com estas observações? Qual é afinal a essência da metáfora do vampiro?

Sim, como dizia atrás em relação a Twilight, os vampiros bons de Twilight são o género de namorado que todas as raparigas gostariam de apresentar aos pais. Estamos muito para além do carácter perverso sexual dos antigos vampiros, do Bram Stoker, por exemplo, em que o vampiro era em parte uma metáfora para os perigos de uma sexualidade exuberante, que reflectia os costumes moralistas da época. Não sei contudo se isto significa que a nossa época é menos moralista ou se mais, pois esta limpeza dos vampiros tira-lhes também o charme da transgressão e, diga-se de passagem, são muito assexuados. Não há nada de mais puritano que aquela relação asséptica entre Edward e Bella.

Garras: O que há de tão peculiar neste mito, para que possa - após tantos sécs. - continuar a atrair mesmo o imaginário mais contemporâneo?

Acho que passa muito pela necessidade que as pessoas têm do sobrenatural. A realidade nunca parece satisfazer -- pelo menos na ficção -- as aspirações do comuns mortais, e a imortalidade, invencibilidade, ausência da doença, do envelhecimento, e conquista da morte, é apelativo desde tempos primordiais e nas suas transfigurações modernas continuará sempre a sê-lo.


Para saber mais: http://oteudestinoestamarcado.tvi.pt/

Alguns filmes de referência: Nosferatu, de D.W.Murnau; Dracula, de Tod Browning; Vampyr, de Carl Dreyer; Bram Stoker´s Dracula de Francis F. Coppola; Entrevista com o Vampiro, de Neil Jordan; The Hunger, de Tony Scott; Vampires, de John Carpenter; Near Dark, de Kathrin Bigelow

O paradoxo da pobreza e da exclusão social versus o grande desenvolvimento científico


A pobreza é uma realidade. Ninguém que se considere consciente o pode ignorar. No entanto, para muitos, isto representa uma profunda contradição dado que o mundo actual goza não só de um considerável nível de riqueza como é tecnologicamente mais evoluído. Na verdade, o real valor da tecnologia é, em termos económicos, reduzir o custo necessário para produzir algo (comida, mecânica, etc.) que por sua vez gera riqueza. Isto significa que quanto maior a capacidade tecnológica, maior a riqueza. Um exemplo especialmente flagrante é a comparação entre países ditos desenvolvidos e países ditos subdesenvolvidos, em que a população dos países subdesenvolvidos (com a excepção dos países produtores de petróleo) é mais pobre, se bem que a existência de pobreza em países desenvolvidos seja mais difícil de explicar.
De acordo com John Rawls o mundo mais justo é o mundo em que a pobreza é mais escassa. Para o atingir, existem essencialmente duas vertentes: o equilíbrio de riqueza entre os cidadãos de um país e a quantidade de riqueza total de um país. A maximização destes dois conceitos corresponde em termos políticos, de uma forma grosseira, respectivamente ao comunismo e ao capitalismo. O problema é que nenhuma vertente é superior à outra, pois um grande equilíbrio de riqueza entre cidadãos pode significar que todos são pobres, e uma grande quantidade de riqueza pode significar que uns são muito pobres. Em suma o problema de pobreza é mais complexo do que possa parecer, e à primeira vista o desenvolvimento científico ou tecnológico não é responsável pela existência ou não existência de pobreza, pois só afecta a quantidade de riqueza. Mas a ciência não é assim tão isenta.

O mundo da ciência é, para muitos, estranho. De facto, os únicos que o entendem realmente são os cientistas, mas pode ser entendido como um modelo de funcionamento do mundo conhecido. A noção de cientismo, i.e. de que a ciência vai responder a tudo, é até um (ultrapassado) conceito filosófico, o que não deixa de ser irónico. O objectivo da ciência é o de aumentar o conhecimento a partir do conhecimento existente, de expandir o mundo conhecido. É a abordagem que mais produz resultados práticos, que gera mais riqueza e cujo critério de validade é mais sofisticado, tendo base tanto em experimentação (observação controlada) e em teoria (lógica). Por outro lado, isto torna a ciência em algo que vale por si, que por natureza é independente de valores morais ou vontades. Mas quem usa a ciência é o Homem, e o Homem é tanto capaz de actos bondosos como de terríveis crimes. E a ciência, sob a forma de tecnologia, amplia muito o poder do Homem. Mas, passará a solução por restringir a investigação em certas áreas do saber?
Joseph Mengele, por exemplo, foi um indivíduo que durante a 2ºGuerra Mundial, conduziu experiências em prisioneiros de campos de concentração que podem ser melhor descritas como tortura minuciosamente registada. Será legítimo usar os dados obtidos para fins médicos, sabendo a proveniência destes dados?
O problema anterior é controverso, mas existe outro problema que provavelmente nos interessará mais: o sistema de patentes. Hoje em dia, para produzir algo industrialmente é necessário uma patente. Este conceito ocidental visa recompensar a investigação e invenção, seja através da criação de uma empresa para vender as aplicações, seja através da venda da patente (autorização exclusiva de produção) a uma empresa interessada. No entanto, isto não só implica que alguma tecnologia potencialmente benéfica não seja acessível a grande parte da população, como também incentiva ao egoísmo que é o ter por objectivo maximizar o rendimento obtido. E podemos, não, devemos resolver este problema o mais rapidamente possível a fim de evitar a exploração de muitos por outros, o que desequilibra a distribuição de riqueza e que, por sua vez potencia a divisão e exclusão social.
Poder-se-iam minimizar estes problemas, procedendo da seguinte forma:
1. Rescindir o estatuto de exclusividade da patente, se bem que naturalmente quem a não possui deve pagar um valor a estipular para o possuidor da patente para produzir, de forma a recompensar a investigação mas também a generalizar (e possivelmente, devido à lógica de mercado, recompensar mais generosamente).
2. Reduzir o número de escalas da hierarquia empresarial, de forma a distribuir mais equitativamente a riqueza, sendo que esta medida também requer um ensino obrigatório mais exigente.
3. Reorganizar a estrutura empresarial de forma que existam empresas especializadas em produção e empresas especializadas em investigação, sendo que esta medida depende da aceitação da primeira para ser verdadeiramente eficaz. Luís Gonçalo Simões 11º 5

quinta-feira, 18 de março de 2010

2010 – ANO EUROPEU DA LUTA CONTRA A POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL


O “terceiro mundo” é formado pela maioria dos países de África, América Central, América do Sul e Ásia. Caracterizam-se por uma falta de recursos económicos, que se traduz numa baixa esperança de vida e numa taxa de mortalidade infantil muito elevada, acrescidas de uma grande carência a nível dos serviços básicos, como escolas, hospitais, habitação e água potável. Outro factor que influencia esta situação crítica são as condições naturais adversas que provocam inundações, terramotos, secas, etc. No entanto, as principais causas desta situação trágica são sociais, políticas e económicas.
Assim, a sobrevivência das pessoas destes países depende muito da solidariedade internacional, que chega em forma de apoio monetário, militar, alimentar.
De facto, os problemas do “terceiro mundo”, estão no centro das preocupações dos países mais desenvolvidos. Prova disso é o sentido que têm tomado a ciência e a tecnologia, surgindo como exemplo os alimentos transgénicos.
Estes, aparte algumas polémicas associadas à sua criação, têm maior resistência a pragas, um tempo de produção bastante inferior e também uma durabilidade de conservação superior à dos alimentos não manipulados. Emergem assim como uma solução, sobretudo para as populações mais pobres, nomeadamente onde há escassez alimentar e além disso poderiam funcionar como uma fonte de crescimento social, incrementando a economia local.
Contudo, maioritariamente, os governantes, dos referidos países, são ditadores e portanto este tipo de solução não os atrai. Dito de outro modo, enquanto o povo continuar preocupado com o assegurar as suas necessidades mais básicas, não se ocupam com outros problemas como o acesso à educação e à cultura e não crescendo nestas áreas, não têm autoridade intelectual que os levem a questionar o domínio e a subjugação a que são submetidos pelos governantes.
Pessoalmente, penso que o fornecimento directo de alimentos não lhes resolve a situação, mas o incentivo à produção de transgénicos poderia ajudar estas populações a resolver os seus problemas, pelo menos os mais imediatos, pois como diz o povo: “não lhes dês peixes ensina-os a pescar”.
Maria Patrício, 11º6

terça-feira, 9 de março de 2010

"Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal"


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Entrevista a Christophe de Dejours - Por Ana Gerschenfeld, in “Público”, 01.02.2010
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Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de “qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho.
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Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.
Christophe DejoursPsiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura. Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.

O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo?
O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.

Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?
Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.
No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.

O que é que mudou nas empresas?
A organização do trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário. A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.” Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…

Mas o assédio no trabalho é novo?
Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.

Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?
São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade. Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.
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Uma formação para o assédio?
Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.

Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio. Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.

Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?
É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total. Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.

E os sindicatos?
Penso que os sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.

Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?
É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.

Quando é que isso aconteceu?
Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar. A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções. Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.

Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.
Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada. Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.

Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio?
Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade? Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho. A Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia. Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer. Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.

Aconteceu sem pré-aviso?
Houve um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa. Mas ela não queria parar, insistia que queria fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela. Nos testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava sexualmente as mulheres e esta mulher era muito bonita. Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque se tinha recusado a fazer o que ele queria.

O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?
Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.

Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?
Não há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho. Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em sítio nenhum. Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo. Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.

Falou de “qualidade total”. O que é exactamente?
É uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho. É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal. Em diabetologia, por exemplo, os gestores introduziram a obrigação de os médicos fazerem, para cada um dos seus doentes, ao longo de três meses, a média dos níveis de hemoglobina glicosilada A1c [ri-se], que é um indicador da concentração de açúcar no sangue. A seguir, comparam entre si os grupos de doentes de cada médico – é assim que controlam a qualidade dos cuidados médicos. [ri-se].Só que, na realidade, quando tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e temos de perceber porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que não consegue respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui legumes e não féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não tem dinheiro para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.Da mesma forma, se um doente diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros fusos horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina. Mais uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.Mesmo uma central nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar disso. Ora, quando o ideal se transforma na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se está a obrigar toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho. Deixa de ser possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas. Quando há um incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.

Isso é extremamente grave.
É. E em medicina passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.

Há muitos suicídios entre os médicos?
Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.

Os médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária…
Foram. Já não são. Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.O que é importante perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que deixaram de funcionar.

Portanto, as ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo.
Sim, o termo exacto é dominação; são técnicas de dominação.

Então, é preciso acabar com essas práticas?
Eu não diria que é preciso acabar com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo a individual. Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o que é quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há avaliações que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser interessante e as pessoas não são contra. Mas sobretudo, a avaliação não deve ser apenas individual. É extremamente importante começar a concentrar os esforços na avaliação do trabalho colectivo e nomeadamente da cooperação, do contributo de cada um. Mas como não sabemos analisar a cooperação, analisa-se somente o desempenho individual.O resultado é desastroso. Não é verdade que a qualidade da produção melhorou. A General Motors foi obrigada a alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a Toyota teve de trocar um milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os clientes porque descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total japonesa?Hoje, nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.Temos de aprender a pensar o trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o analisar, avaliar – para o cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho colectivo como cooperação, como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar isso no trabalho, ficamos com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a evitar a violência, aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a ouvir o dos outros.

Não haverá por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito empresarial?
É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.

Qual é a diferença entre taylorismo e fordismo?
Taylor inventou a divisão das tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada tarefa, de uma intervenção da direcção, através de um capataz. Há constantemente alguém a vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A palavra-chave é obediência. “Quando eu disser para parar de trabalhar e ir comer qualquer coisa, você vai obedecer. Se concordar, será pago mais 50 cêntimos pela sua obediência.” A única coisa que importa é a obediência. O objectivo é acabar com o ócio, os tempos mortos.Só muito mais tarde é que Ford introduziu uma nova técnica, a linha de montagem, que é uma aplicação do taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias. O toyotismo [ou Sistema Toyota de Produção] utiliza um outro método de dominação, o ohnismo [inventado por Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É um método particular que extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito mais subtil que o taylorismo, que apenas estipula que há pessoas que têm de obedecer e outras que mandam.No ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.O sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais. Mas há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício garantido na empresa.O sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].

O que é o karōshi?
É uma morte súbita, geralmente por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas que não apresentam qualquer factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não sofrem de hipertensão, não têm níveis de colesterol elevados, não são diabéticos, não fumam, não são alcoólicos, não tem uma história familiar de AVC. Nada. A único factor que é possível detectar é o excesso de trabalho. Estas pessoas trabalham mais de 70 horas por semana, sem contar as horas passadas nos círculos de qualidade. Ou seja, são pessoas que estão literalmente sempre a trabalhar. Mal param de trabalhar, vão dormir. As descrições de colegas que foram fazer inquéritos no Japão são aterrorizadoras.O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.As famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.

Mas uma coisa destas não é aplicável na Europa
Não, pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.

Mas acha que poderia acontecer?
Sim, acho que poderíamos lá chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz, não há uma fatalidade, não é a mundialização que determina as coisas, não é a guerra económica. É perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de outra maneira, e há empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de preservar o “viver juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem puramente de gestão. O que não impede que a tendência seja para a desestruturação um pouco por todo o lado. É difícil resistir-lhe.

Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade. Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas. E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

O que fizeram?
Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas. Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo. Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto. Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.