terça-feira, 18 de maio de 2010

Valorização do património cultural


No dia 7 de Fevereiro, foi inaugurada uma exposição na escola, que teve a duração de uma semana, a qual teve como tema “As sete Maravilhas de Coimbra”. A iniciativa foi tomada pelos alunos de um grupo de Área de Projecto do 12º8 (Diogo Rodrigues, Francisca Cordeiro, Mariana Marques e Pedro Maranha) que, previamente elegeram sete locais que consideraram de destaque em Coimbra.
A exposição teve como objectivo dar a conhecer monumentos, jardins e edifícios relevantes da cidade, como forma de valorizar o património cultural e incentivando à dinamização deste.
Nesta exposição o destaque foi para as fotografias que representavam cada uma das Maravilhas, a par de objectos alusivos a estas como livros, traje académico e, ainda, doçaria conventual. No decorrer da exposição, também, o fado de Coimbra foi uma constante, acompanhado pela letra de um deles à entrada, o que o Diário de Coimbra também mencionou na notícia que fez sobre a exposição.
A finalidade da iniciativa foi cumprida, uma vez que conseguimos divulgar a riqueza cultural da cidade e o desafio de preservar e dinamizar Coimbra foi lançado.
A par desta exposição, o grupo realizou uma visita guiada ao Jardim Botânico, no dia 21 de Abril, com o objectivo de pôr os alunos em contacto com esta riqueza natural, tão importante para o desenvolvimento de espécies em Portugal e na Europa. A visita foi muito interessante, houve a oportunidade de conhecer locais do Jardim interditos ao público como a Mata, a Estufa Fria e as Estufas Quentes.
O objectivo geral do grupo está a ser cumprido e pretende continuar a fazer com que os alunos não se esqueçam das suas origens, de onde são e o que têm.


Os alunos do grupo:
Diogo Rodrigues
Francisca Cordeiro
Mariana Marques
Pedro Maranha

Criminalidade em exposição no José Falcão


No âmbito da área curricular não disciplinar de Área de Projecto, um grupo de alunos da turma 8 do 12º ano organizou uma exposição sobre “Criminalidade”, entre os dias 12 e 16 de Abril. Para além de dados estatísticos oficiais, foram ainda apresentados os resultados dos inquéritos realizados no inicio do ano, informações acerca das várias forças de segurança, medidas ou soluções para a problemática do crime, recortes de jornais locais que demonstram a frequência e gravidade do problema, e ainda uma entrevista realizada a uma professora de um estabelecimento prisional. Para o final do ano está agendada a apresentação das conclusões do trabalho realizado, as quais poderão ser consultadas na internet, no endereço: http://www.criminalidade-aprojecto.blogspot.com/ .

domingo, 18 de abril de 2010

ESCOLA J. FALCÃO EVOCA AS VÍTIMAS DO HOLOCAUSTO




De 12 a 16 de Abril decorre, na Escola Secundária José Falcão, uma homenagem evocativa das vítimas do Holocausto. Com o seu título, O Dever de Memória, pretende-se que os jovens compreendam as causas desse infausto e dramático acontecimento, e que reflictam sobre as suas consequências.
O filme, A Fuga de Sobibor, é visionado por todos os alunos. Complementarmente, está patente uma exposição sobre o tema na sala do átrio, aberta à comunidade. Durante todos os dias em que decorre esta evocação, no final da exibição do filme haverá lugar a debate, dinamizado pelo Professor Doutor Reis Torgal (dias 12 e 14) e pelo Dr. Alfredo Reis. (dias 13,15 e 16)

No primeiro dia, Reis Torgal explicou a lógica do nazismo e deixou bem claro que este problema não é exclusivo do passado, e que, se houver condições, ele pode ressurgir a qualquer momento e em qualquer lugar. Alunos e professores colocaram questões inquietantes a que o palestrante respondeu de uma forma igualmente problematizadora

quinta-feira, 15 de abril de 2010

ENTREVISTA COM ARTUR RIBEIRO, Argumentista da série da TVI “Destino Imortal”



Garras: O êxito dos filmes da série Twilight fez ressurgir o interesse pela secular temática do "vampirismo". Viu os filmes? E o que pensa da abordagem cinematográfica escolhida para a adaptação da obra de Stephenie Meyer?

Os livros e filmes da saga Twilight foram um fenómeno devido à reciclagem "teenage-american-dream" que é vinculada através da fabulização dos vampiros como os novos "good-bad-boys". Se analisarmos a estrutura de Twilight encontramos a velha história clássica de romance adolescente de liceu, em que a menina que é diferente das outras -- a nova aluna, vinda de fora, tímida, modesta, etc -- fica com o rapaz mais apetecido e mais cool do liceu: no caso, o vampiro Edward (chegando aqui ao ponto de este vampiro em vez de morrer ao sol fica a brilhar com a pele cheia de "diamantes dourados" -- bem diziam que "diamonds are the girl's best friend"). Neste caso, os alunos vampiros são os mais cool, mais bonitos, mais ricos, conduzem os melhores carros, têm a melhor roupa, e por isso, tirando o facto de beberem sangue e serem imortais, são iguais aos outros paradigmas dos filmes para adolescentes americanos, aqui com uma mais valia pois podem dar grandes saltos, parar veículos com as mãos e baterem de forma sobre-humana nos rapazes maus salvando as donzelas em risco de serem violadas (se recordarmos os vampiros de outros tempos, eram eles que violavam as donzelas...). Por outro lado, sobretudo na versão em livro, o texto é criado do ponto de vista da adolescente (a escrita é mesmo adolescente, até no mau sentido de ser fraquinha como escrita) e isso ajudou a conquistar as milhões de fãs na sua maioria jovens raparigas que são igualmente quem mais vai ao cinema e quem mais lê.

Garras: A abrangência das referências cinéfilas sobre o vampirismo é já longínqua, desde o incontornável Nosferatu(1922) de F. W. Murnau, até aos mais recentes Dracula (1992) de F. F. Coppola, ou à Entrevista com o Vampiro(1994) de Neil Jordan. Sei que fez uma alargada pesquisa sobre o tema. Quais foram os suas fontes de inspiração?

Quando me propuseram escrever uma série de vampiros a minha primeira preocupação foi o que poderia escrever de original num género já tão rico em narrativas, com três séculos de tradição e várias obras-primas. Por isso, não só fui rever alguns dos filmes referidos, como também fui espreitar as actuais séries de televisão de sucesso como o True Blood ou o Vampire Diaries. Sentindo que seria difícil encontrar algo que não seja de uma forma ou de outra abordado em algumas destas referências, fui pesquisar a história e foi lá que se fez luz, ao encontrar a figura do Dampiro.

Garras: A ideia da figura do dampiro é pouco usual dentro deste imaginário cinéfilo. O que o levou a introduzir este tipo de conceito no argumento?

Ao pesquisar a história das lendas dos vampiros encontrei a referência no folclore dos balcãs a esta figura de um filho de vampiro com mulher humana, que podia ter os poderes dos vampiros mas não as suas fraquezas, e por isso tornavam-se caçadores de vampiros natos. Embora naturalmente lendária, esta figura era encarnada na época por espertalhões que se faziam passar por dampiros e eram contratados pelas populações aterrorizadas por vampiros para os destruir. Contudo, o que me interessou na figura foi o seu lado Freudiano/Edipiano do filho renegar a sua descendência e tornar-se o assassino do próprio pai, ou pelo menos da sua espécie. Ao mesmo tempo, como me pediam também uma história de amor, descobri aqui um elemento que poderia ser original e interessante: a sensação de amor à primeira vista que o dampiro Miguel sente pela vampira Sofia (ainda ambos não sabendo o que outro é, e no caso do Miguel o que ele próprio é) não é mais que um mecanismo de defesa animal, e as sensações que passam entre os dois à partida não será de amor mas de ódio e destruição. Esta confusão entre o amor e ódio pareceu-me um ponto de partida diferente para um romance e daqui lançamo-nos -- com a Cristina Silva, minha co-argumentista -- para a história desta mini-série com um conflito que nos pareceu poder dar um bom desenvolvimento.

Garras: O actual tratamento do vampirismo no cinema, em particular da série Twilight, é frequentemente referido como sendo demasiado light, longe do conceito mais sombrio, sangrento e sexual a que o tema sempre esteve associado. Concorda com estas observações? Qual é afinal a essência da metáfora do vampiro?

Sim, como dizia atrás em relação a Twilight, os vampiros bons de Twilight são o género de namorado que todas as raparigas gostariam de apresentar aos pais. Estamos muito para além do carácter perverso sexual dos antigos vampiros, do Bram Stoker, por exemplo, em que o vampiro era em parte uma metáfora para os perigos de uma sexualidade exuberante, que reflectia os costumes moralistas da época. Não sei contudo se isto significa que a nossa época é menos moralista ou se mais, pois esta limpeza dos vampiros tira-lhes também o charme da transgressão e, diga-se de passagem, são muito assexuados. Não há nada de mais puritano que aquela relação asséptica entre Edward e Bella.

Garras: O que há de tão peculiar neste mito, para que possa - após tantos sécs. - continuar a atrair mesmo o imaginário mais contemporâneo?

Acho que passa muito pela necessidade que as pessoas têm do sobrenatural. A realidade nunca parece satisfazer -- pelo menos na ficção -- as aspirações do comuns mortais, e a imortalidade, invencibilidade, ausência da doença, do envelhecimento, e conquista da morte, é apelativo desde tempos primordiais e nas suas transfigurações modernas continuará sempre a sê-lo.


Para saber mais: http://oteudestinoestamarcado.tvi.pt/

Alguns filmes de referência: Nosferatu, de D.W.Murnau; Dracula, de Tod Browning; Vampyr, de Carl Dreyer; Bram Stoker´s Dracula de Francis F. Coppola; Entrevista com o Vampiro, de Neil Jordan; The Hunger, de Tony Scott; Vampires, de John Carpenter; Near Dark, de Kathrin Bigelow

O paradoxo da pobreza e da exclusão social versus o grande desenvolvimento científico


A pobreza é uma realidade. Ninguém que se considere consciente o pode ignorar. No entanto, para muitos, isto representa uma profunda contradição dado que o mundo actual goza não só de um considerável nível de riqueza como é tecnologicamente mais evoluído. Na verdade, o real valor da tecnologia é, em termos económicos, reduzir o custo necessário para produzir algo (comida, mecânica, etc.) que por sua vez gera riqueza. Isto significa que quanto maior a capacidade tecnológica, maior a riqueza. Um exemplo especialmente flagrante é a comparação entre países ditos desenvolvidos e países ditos subdesenvolvidos, em que a população dos países subdesenvolvidos (com a excepção dos países produtores de petróleo) é mais pobre, se bem que a existência de pobreza em países desenvolvidos seja mais difícil de explicar.
De acordo com John Rawls o mundo mais justo é o mundo em que a pobreza é mais escassa. Para o atingir, existem essencialmente duas vertentes: o equilíbrio de riqueza entre os cidadãos de um país e a quantidade de riqueza total de um país. A maximização destes dois conceitos corresponde em termos políticos, de uma forma grosseira, respectivamente ao comunismo e ao capitalismo. O problema é que nenhuma vertente é superior à outra, pois um grande equilíbrio de riqueza entre cidadãos pode significar que todos são pobres, e uma grande quantidade de riqueza pode significar que uns são muito pobres. Em suma o problema de pobreza é mais complexo do que possa parecer, e à primeira vista o desenvolvimento científico ou tecnológico não é responsável pela existência ou não existência de pobreza, pois só afecta a quantidade de riqueza. Mas a ciência não é assim tão isenta.

O mundo da ciência é, para muitos, estranho. De facto, os únicos que o entendem realmente são os cientistas, mas pode ser entendido como um modelo de funcionamento do mundo conhecido. A noção de cientismo, i.e. de que a ciência vai responder a tudo, é até um (ultrapassado) conceito filosófico, o que não deixa de ser irónico. O objectivo da ciência é o de aumentar o conhecimento a partir do conhecimento existente, de expandir o mundo conhecido. É a abordagem que mais produz resultados práticos, que gera mais riqueza e cujo critério de validade é mais sofisticado, tendo base tanto em experimentação (observação controlada) e em teoria (lógica). Por outro lado, isto torna a ciência em algo que vale por si, que por natureza é independente de valores morais ou vontades. Mas quem usa a ciência é o Homem, e o Homem é tanto capaz de actos bondosos como de terríveis crimes. E a ciência, sob a forma de tecnologia, amplia muito o poder do Homem. Mas, passará a solução por restringir a investigação em certas áreas do saber?
Joseph Mengele, por exemplo, foi um indivíduo que durante a 2ºGuerra Mundial, conduziu experiências em prisioneiros de campos de concentração que podem ser melhor descritas como tortura minuciosamente registada. Será legítimo usar os dados obtidos para fins médicos, sabendo a proveniência destes dados?
O problema anterior é controverso, mas existe outro problema que provavelmente nos interessará mais: o sistema de patentes. Hoje em dia, para produzir algo industrialmente é necessário uma patente. Este conceito ocidental visa recompensar a investigação e invenção, seja através da criação de uma empresa para vender as aplicações, seja através da venda da patente (autorização exclusiva de produção) a uma empresa interessada. No entanto, isto não só implica que alguma tecnologia potencialmente benéfica não seja acessível a grande parte da população, como também incentiva ao egoísmo que é o ter por objectivo maximizar o rendimento obtido. E podemos, não, devemos resolver este problema o mais rapidamente possível a fim de evitar a exploração de muitos por outros, o que desequilibra a distribuição de riqueza e que, por sua vez potencia a divisão e exclusão social.
Poder-se-iam minimizar estes problemas, procedendo da seguinte forma:
1. Rescindir o estatuto de exclusividade da patente, se bem que naturalmente quem a não possui deve pagar um valor a estipular para o possuidor da patente para produzir, de forma a recompensar a investigação mas também a generalizar (e possivelmente, devido à lógica de mercado, recompensar mais generosamente).
2. Reduzir o número de escalas da hierarquia empresarial, de forma a distribuir mais equitativamente a riqueza, sendo que esta medida também requer um ensino obrigatório mais exigente.
3. Reorganizar a estrutura empresarial de forma que existam empresas especializadas em produção e empresas especializadas em investigação, sendo que esta medida depende da aceitação da primeira para ser verdadeiramente eficaz. Luís Gonçalo Simões 11º 5

quinta-feira, 18 de março de 2010

2010 – ANO EUROPEU DA LUTA CONTRA A POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL


O “terceiro mundo” é formado pela maioria dos países de África, América Central, América do Sul e Ásia. Caracterizam-se por uma falta de recursos económicos, que se traduz numa baixa esperança de vida e numa taxa de mortalidade infantil muito elevada, acrescidas de uma grande carência a nível dos serviços básicos, como escolas, hospitais, habitação e água potável. Outro factor que influencia esta situação crítica são as condições naturais adversas que provocam inundações, terramotos, secas, etc. No entanto, as principais causas desta situação trágica são sociais, políticas e económicas.
Assim, a sobrevivência das pessoas destes países depende muito da solidariedade internacional, que chega em forma de apoio monetário, militar, alimentar.
De facto, os problemas do “terceiro mundo”, estão no centro das preocupações dos países mais desenvolvidos. Prova disso é o sentido que têm tomado a ciência e a tecnologia, surgindo como exemplo os alimentos transgénicos.
Estes, aparte algumas polémicas associadas à sua criação, têm maior resistência a pragas, um tempo de produção bastante inferior e também uma durabilidade de conservação superior à dos alimentos não manipulados. Emergem assim como uma solução, sobretudo para as populações mais pobres, nomeadamente onde há escassez alimentar e além disso poderiam funcionar como uma fonte de crescimento social, incrementando a economia local.
Contudo, maioritariamente, os governantes, dos referidos países, são ditadores e portanto este tipo de solução não os atrai. Dito de outro modo, enquanto o povo continuar preocupado com o assegurar as suas necessidades mais básicas, não se ocupam com outros problemas como o acesso à educação e à cultura e não crescendo nestas áreas, não têm autoridade intelectual que os levem a questionar o domínio e a subjugação a que são submetidos pelos governantes.
Pessoalmente, penso que o fornecimento directo de alimentos não lhes resolve a situação, mas o incentivo à produção de transgénicos poderia ajudar estas populações a resolver os seus problemas, pelo menos os mais imediatos, pois como diz o povo: “não lhes dês peixes ensina-os a pescar”.
Maria Patrício, 11º6

terça-feira, 9 de março de 2010

"Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal"


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Entrevista a Christophe de Dejours - Por Ana Gerschenfeld, in “Público”, 01.02.2010
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Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de “qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho.
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Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.
Christophe DejoursPsiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura. Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.

O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo?
O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.

Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?
Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.
No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.

O que é que mudou nas empresas?
A organização do trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário. A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.” Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…

Mas o assédio no trabalho é novo?
Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.

Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?
São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade. Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.
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Uma formação para o assédio?
Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.

Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio. Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.

Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?
É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total. Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.

E os sindicatos?
Penso que os sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.

Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?
É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.

Quando é que isso aconteceu?
Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar. A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções. Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.

Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.
Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada. Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.

Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio?
Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade? Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho. A Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia. Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer. Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.

Aconteceu sem pré-aviso?
Houve um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa. Mas ela não queria parar, insistia que queria fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela. Nos testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava sexualmente as mulheres e esta mulher era muito bonita. Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque se tinha recusado a fazer o que ele queria.

O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?
Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.

Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?
Não há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho. Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em sítio nenhum. Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo. Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.

Falou de “qualidade total”. O que é exactamente?
É uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho. É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal. Em diabetologia, por exemplo, os gestores introduziram a obrigação de os médicos fazerem, para cada um dos seus doentes, ao longo de três meses, a média dos níveis de hemoglobina glicosilada A1c [ri-se], que é um indicador da concentração de açúcar no sangue. A seguir, comparam entre si os grupos de doentes de cada médico – é assim que controlam a qualidade dos cuidados médicos. [ri-se].Só que, na realidade, quando tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e temos de perceber porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que não consegue respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui legumes e não féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não tem dinheiro para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.Da mesma forma, se um doente diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros fusos horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina. Mais uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.Mesmo uma central nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar disso. Ora, quando o ideal se transforma na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se está a obrigar toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho. Deixa de ser possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas. Quando há um incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.

Isso é extremamente grave.
É. E em medicina passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.

Há muitos suicídios entre os médicos?
Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.

Os médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária…
Foram. Já não são. Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.O que é importante perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que deixaram de funcionar.

Portanto, as ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo.
Sim, o termo exacto é dominação; são técnicas de dominação.

Então, é preciso acabar com essas práticas?
Eu não diria que é preciso acabar com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo a individual. Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o que é quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há avaliações que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser interessante e as pessoas não são contra. Mas sobretudo, a avaliação não deve ser apenas individual. É extremamente importante começar a concentrar os esforços na avaliação do trabalho colectivo e nomeadamente da cooperação, do contributo de cada um. Mas como não sabemos analisar a cooperação, analisa-se somente o desempenho individual.O resultado é desastroso. Não é verdade que a qualidade da produção melhorou. A General Motors foi obrigada a alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a Toyota teve de trocar um milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os clientes porque descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total japonesa?Hoje, nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.Temos de aprender a pensar o trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o analisar, avaliar – para o cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho colectivo como cooperação, como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar isso no trabalho, ficamos com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a evitar a violência, aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a ouvir o dos outros.

Não haverá por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito empresarial?
É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.

Qual é a diferença entre taylorismo e fordismo?
Taylor inventou a divisão das tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada tarefa, de uma intervenção da direcção, através de um capataz. Há constantemente alguém a vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A palavra-chave é obediência. “Quando eu disser para parar de trabalhar e ir comer qualquer coisa, você vai obedecer. Se concordar, será pago mais 50 cêntimos pela sua obediência.” A única coisa que importa é a obediência. O objectivo é acabar com o ócio, os tempos mortos.Só muito mais tarde é que Ford introduziu uma nova técnica, a linha de montagem, que é uma aplicação do taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias. O toyotismo [ou Sistema Toyota de Produção] utiliza um outro método de dominação, o ohnismo [inventado por Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É um método particular que extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito mais subtil que o taylorismo, que apenas estipula que há pessoas que têm de obedecer e outras que mandam.No ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.O sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais. Mas há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício garantido na empresa.O sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].

O que é o karōshi?
É uma morte súbita, geralmente por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas que não apresentam qualquer factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não sofrem de hipertensão, não têm níveis de colesterol elevados, não são diabéticos, não fumam, não são alcoólicos, não tem uma história familiar de AVC. Nada. A único factor que é possível detectar é o excesso de trabalho. Estas pessoas trabalham mais de 70 horas por semana, sem contar as horas passadas nos círculos de qualidade. Ou seja, são pessoas que estão literalmente sempre a trabalhar. Mal param de trabalhar, vão dormir. As descrições de colegas que foram fazer inquéritos no Japão são aterrorizadoras.O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.As famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.

Mas uma coisa destas não é aplicável na Europa
Não, pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.

Mas acha que poderia acontecer?
Sim, acho que poderíamos lá chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz, não há uma fatalidade, não é a mundialização que determina as coisas, não é a guerra económica. É perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de outra maneira, e há empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de preservar o “viver juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem puramente de gestão. O que não impede que a tendência seja para a desestruturação um pouco por todo o lado. É difícil resistir-lhe.

Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade. Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas. E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

O que fizeram?
Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas. Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo. Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto. Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.



6ª Edição das Masterclasses Internacionais em Física de Partículas


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Relatório da Actividade

No passado dia 20 de Fevereiro, 8 alunos que frequentam a disciplina de Física do 12º ano participaram na 6ª Edição das Masterclasses Internacionais em Física de Partículas, que se realizaram no Departamento de Física da Universidade de Coimbra.
As Masterclasses em Física de Partículas são uma actividade realizada a nível internacional sendo organizadas pelo Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP) em parceria com os Institutos e Universidades participantes. Tem como principal objectivo mostrar aos alunos o tipo de actividades que são desenvolvidas na Física Experimental de Partículas e promover os Institutos e Universidades onde se realizam.
Durante a manhã os alunos participaram em duas palestras, dinamizadas pelo Dr. João Carvalho e pelo Dr. Filipe Veloso, ambos investigadores do CERN, onde foram ensinados os fundamentos da Física de Partículas e as técnicas básicas usadas na análise de acontecimentos.
Por volta das 12.00 h, foi oferecido um almoço nas instalações universitárias a todos os participantes, onde houve oportunidade de conviver com alunos e professores de outras escolas.
Durante a tarde as actividades decorreram nos Laboratórios de Informática, onde foi fornecido aos alunos um conjunto de imagens de acontecimentos reais, adquiridos no LEP (CERN), sendo solicitada a sua análise e classificação por categorias (decaimentos hadrónicos, e+/e-, mu+, mu-, etc.). Os resultados foram discutidos em vídeo-conferência com outros grupos de visita a outras Universidades Portuguesas aderentes ao evento nesse dia e com dois investigadores presentes no CERN. Seguiu-se depois um questionário dirigido a todos os participantes, também em vídeo-conferência.
Após a distribuição de prémios e certificados de participação foi oferecido a todos os participantes um lanche.
Esta foi uma actividade bastante enriquecedora para os alunos, que se sentiram autênticos cientistas por um dia, alargando os seus conhecimentos numa área da Física bastante actual, como é a Física das partículas. Os alunos revelaram grande interesse, curiosidade e vontade de saber, pelo que os objectivos desta actividade foram alcançados
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Os Professores:

João Tremoço
Anabela Fernandes

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

PAUSA REFLEXIVA Sobre os 65 anos da libertação de Auschwitz – 27/01/1945



A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade actual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direcção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efectivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador.
A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não quisermos cair presas da retórica idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive porque tanto a estrutura básica da sociedade como os seus membros, responsáveis por termos chegado onde estamos, não mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhões de pessoas inocentes ---- e só o simples fato de citar números já é humanamente indigno, quanto mais discutir quantidades —foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um fenómeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa. Nesta medida gostaria de remeter a um evento, que de um modo muito sintomático parece pouco conhecido na Alemanha, apesar de constituir a temática de um best-seller como Os quarenta dias de Musa Dagh, de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos —- o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha —— mandaram assassinar mais de um milhão de arménios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito, O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX.

Além disso não podemos evitar ponderações no sentido de que a invenção da bomba atómica, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um só golpe, insere-se no mesmo nexo histórico que o genocídio. Tornou-se habitual chamar o aumento súbito da população de explosão populacional: parece que a fatalidade histórica, para fazer frente à explosão populacional, dispõe também de contra-explosões, o morticínio de populações inteiras. Isto só para indicar como as forças às quais é preciso se opor integram o curso da história mundial.
Theodor Adorno – 1903 - 1969Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objectivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são irnpelidas necessariamente para o lado subjectivo. Com isto refiro-me sobretudo também à psicologia das pessoas que fazem coisas desse tipo. Não acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsáveis por tais actos reagiriam com menosprezo; também não acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vitimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direcção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais actos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais actos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram Contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem reflectir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. Contudo, na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo carácter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por oblativo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância. Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é ainda mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele dificilmente poderia imaginar. porém o mal-estar na cultura tem seu lado social ---- o que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional.
Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo ---- seja isto verdade ou não —- felizes. De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade.
Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projecto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos nevrálgicos. Com frequência por exemplo, nos Estados Unidos —- o espírito germânico de confiança na autoridade foi responsabilizado pelo nazismo e também por Auschwitz. Considero esta afirmação excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em muitos outros países europeus, comportamentos autoritários e autoridades cegas perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se queira reconhecer. Antes é de se supor que o fascismo e o horror que produziu se relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do império haviam ruído e se esfacelado, mas as pessoas ainda não se encontravam psicologicamente preparadas para a autodeterminação. Elas não se revelaram à altura da liberdade com que foram presenteadas de repente. É por isso que as estruturas de autoridade assumiram aquela dimensão destrutiva e ---- por assim dizer — de desvario que antes, ou não possuíam, ou seguramente não revelavam. Quando lembramos que visitantes de quaisquer potentados. já politicamente desprovidos de qualquer função real, levam populações inteiras a explosões de êxtase, então se justifica a suspeita de que o potencial autoritário permanece muito mais forte do que o imaginado. Porém quero enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou não retorno do fascismo constitui em seu aspecto mais decisivo uma questão social e não uma questão psicológica. Refiro-me tanto ao lado psicológico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em grande medida escapam à acção da educação, quando não se subtraem inteiramente à interferência dos indivíduos.

Frequentemente pessoas bem-intencionadas e que se opõem a que tudo aconteça de novo citam o conceito de vínculos de compromisso. A ausência de compromissos das pessoas seria responsável pelo que aconteceu. Isto efectivamente tem a ver com a perda da autoridade, uma das condições do pavor sadomasoquista. É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático "não deves". Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até mesmo na exigência de que se restabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que provoquem alguma coisa —- mesmo que esta seja boa ----, sem que eles sejam experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito prontamente. E espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores. Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral --— são assumidos com o objectivo de identificar-se como cidadão confiável — ou então produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo, O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de excepção de comando. O único poder efectivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.
Certa feita uma experiência me assustou muito: numa viagem ao lago de Constância, eu lia num jornal de Baden em que se informava acerca da peça Mortos sem sepuItura, de Sartre, que representa as situações mais terríveis. A peça incomodava visivelmente o critico. Mas ele não explicou este incómodo mediante o horror da coisa que constitui o horror de nosso mundo, mas torceu a questão como se, frente a uma posição como a de Sartre, que se ocupara do problema, nós tivéssemos, por assim dizer, um sentido para algo mais nobre: que não poderíamos reconhecer a ausência de sentido do horror. Resumindo: o critico procurava se subtrair ao confronto com o horror graças a um sofisticado palavreado existencial. O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contacto com a questão. rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tomasse o responsável, e não os verdadeiros culpados.
Em relação ao problema de autoridade e barbárie considero importante um aspecto que geralmente passa quase despercebido. Ele é mencionado numa observação do livro O Estado da SS, de Eugen Kogon, que contém abordagens importantes deste todo complexo e que não recebeu a atenção merecida por parte da ciência e da pedagogia. Kogon afirma que os algozes do campo de concentração em que ele mesmo passou anos eram em sua maioria jovens filhos de camponeses. A diferença cultural ainda persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições do horror, embora certamente não seja nem a única nem a mais importante. Repudio qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural. Sei que ninguém tem culpa por nascer na cidade ou se formar no campo. Mas registro apenas que provavelmente no campo o insucesso da desbarbarização foi ainda maior. Mesmo a televisão e os outros meios de comunicação de massa, ao que tudo indica, não provocaram muitas mudanças na situação de desfasagem cultural. Parece-me mais correcto afirmar isto e procurar uma mudança do que elogiar de uma maneira nostálgica quaisquer qualidades especiais da vida rural ameaçadas de desaparecer. Penso até que a desbarbarização do campo constitui um dos objectivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupõe um estudo da consciência e do inconsciente da respectiva população. Sobretudo é preciso atentar ao impacto dos modernos meios de comunicação de massa sobre um estado de consciência que ainda não atingiu o nível do liberalismo cultural burguês do século XIX.
Para mudar essa situação, o sistema normal de escolarização, frequentemente bastante problemático no campo, seria insuficiente. Penso numa série de possibilidades. Uma seria — e estou improvisando — o planeamento de transmissões de televisão atendendo pontos nevrálgicos daquele peculiar estado de consciência. Além disto, imagino a formação de grupos e colunas educacionais móveis de voluntários que se dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais graves por meio de discussões, de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas serão muito bem-vistas. Mas com o passar do tempo se estabelecerá um pequeno círculo que se imporá e que talvez tenha condições de se irradiar.
Entretanto não deve haver nenhum mal-entendido quanto à inclinação arcaica pela violência existente também nas cidades, principalmente nos grandes centros. Tendências de regressão — ou seja, pessoas com traços sádicos reprimidos — são produzidas por toda parte pela tendência social geral. Nessa medida quero lembrar a relação perturbada e patogénica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na Dialética do esclarecimento. Em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflecte sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propicia à violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de pessoa inculta como até mesmo a sua linguagem —-- principalmente quando algo é criticado ou exigido — se torna ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma violência corporal quase incontrolada. Aqui seria preciso estudai também a função do desporto. que ainda não foi devidamente reconhecida por uma psicologia social crítica. O desporto é ambíguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão a brutalidade C o sadismo, principalmente no caso de espectadores. que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à. disciplina do desporto; são aqueles que costumam gritar nos campos desportivos. É preciso analisar de uma maneira sistemática essa ambiguidade. Os resultados teriam que ser aplicados à vida desportiva na medida da influência da educação sobre a mesma.
Tudo isso se relaciona de um modo ou outro à velha estrutura vinculada à autoridade, a modos de agir ---- eu quase diria — do velho e bom carácter autoritário. Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constitui presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega com o colectivo. Por outro, são talhados para manipular massas, colectivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os colectivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da colectivização. Isto não é tão abstracto quanto passa parecer ao entusiasmo participativo, especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os colectivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada um na escola. ~ preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física —muitas vezes insuportável -— a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do colectivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram tais barbaridades com o nome de "costumes". Eis aqui um campo muito actual para a ciência. Ela poderia inverter decididamente essa tendência da etnologia encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares.
Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educação tradicional em geral: a severidade. Esta pode até mesmo remeter a uma afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre Auschwitz, em um de seus acessos, o terrível Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à disciplina. Ela seria necessária para constituir o tipo de homem que lhe parecia adequado. Essa ideia educacional da severidade, em que irreflectidamente muitos podem até acreditar, é totalmente equivocada. A ideia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que — como mostrou a psicologia — se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objectivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido.
Pessoas que se enquadram cegamente em colectivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres auto-determinados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo "caráter manipulador" em Authoritarian personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não se conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do carácter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos confirmados empiricamente só muito tempo depois. O carácter manipulador — e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca desses lideres nazistas —- se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas directas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais acções. Ele faz do ser actuante, da actividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem activo. Este tipo encontra-se, entrementes — a crer em minhas observações e generalizando algumas pesquisas sociológicas ----, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode ser constatado hoje a partir de casos numerosos, como delinquentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos semelhantes, diariamente presentes no noticiário. Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de carácter manipulador — o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão — eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas. Isto é muito bem traduzido pela expressão aprontar, que goza de igual popularidade entre os valentões juvenis e entre os nazistas. Esta expressão aprontar define as pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e devidamente acelerada das pessoas aos colectivos. Algo disso encontra-se no espírito da época, por menos procedente que seja falar em espírito nesses termos. Enfim, resumirei citando Paul Valéry, que antes da última Guerra Mundial disse que a desumanidade teria um grande futuro. É particularmente difícil confrontar esta questão porque aquelas pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experiências, por isto mesmo revelam traços de incomunicabilidade, no que se identificam com certos doentes mentais ou personalidades psicóticas.

Nas tentativas de actuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu-me fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de constituição do carácter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua formação, pela transformação das condições para tanto. Quero fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom é contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua génese. Obviamente seria difícil levá-los a falar; em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus próprios métodos para aprender como eles se tornaram do jeito que são. De qualquer modo, entrementes eles se sentem — justamente em seu colectivo, com a sensação de que todos são velhos nazistas —-- tão protegidos, que praticamente nenhum demonstrou nem ao menos remorsos. Porém presumivelmente também neles, ou em alguns deles, existem pontos de apoio psicológicos mediante os quais seria possível mudar isto, como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentirão importantes ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, é de supor que também nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra actualmente em grande parte em processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim — pressupondo por hipótese que esse conhecimento é possível —, seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua concretização; não pretendo sobrestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em condições iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim —que se é de um determinado modo e não de outro ---- é apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. Mencionei o conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria recompensador.
No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua quanto a do desporto, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades — tipos de distribuição da energia psíquica — de que necessitam socialmente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece actualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano geral. Por outro lado, na relação actual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogénico. Isto se vincula ao "véu tecnológico". Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios —— e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os fins — uma vida humana digna — encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas. Afirmações gerais como estas são até convincentes. Porém uma tal hipótese ainda é excessivamente abstracta. Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projecta um sistema ferroviário para conduzir as vitimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com Outras pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e vinculadas à autoridade com que nos ocupamos em Authoritarian Personality, em Berkeley, forneceram muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental ---- e a própria expressão já é do repertório da consciência coisificada -— afirmava de si mesmo: "I like nice equipament" (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos bonitos), independentemente dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais. O perturbador — porque torna tão desesperante actuar contrariamente a isso — é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o mesmo que ser contra o espírito do mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no começo como sendo o aspecto mais obscuro de uma educação contra Auschwitz.
Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração actual — e provavelmente há milénios —- a sociedade não repousa em atracção, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se sedimentou do modo mais profundo no carácter das pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitária, na verdade constitui uma reacção, um entrosar-se de pessoas frias que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem excepção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participação oportunista" era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto. A frieza da mónada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto.
Não me entendam mal. Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã: ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor, repito, é uma deficiência de todas as pessoas, sem excepção, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra estrutura do carácter, diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar são elas próprias incapazes de amar e por isto nem são tão amáveis assim. Um dos grandes impulsos do cristianismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou; possivelmente porque não mexeu com a ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente até hoje nunca existiu aquele calor humano que todos almejamos, a não ser durante períodos breves e em grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacíficos. Os utópicos frequentemente ridicularizados perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a atracção como algo ainda por ser constituído por uma ordem social digna de um ponto de vista humano. Também reconheceu que esta situação só seria possível quando os instintos não fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que pode ajudar contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. Mas mesmo aqui pode haver ilusões. Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que deixam de ser protegidas. Mas, sobretudo, não é possível mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam. O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo directo e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. O incentivo ao amor ----- provavelmente na forma mais imperativa, de um dever — constitui ele próprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que actua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada.

Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas possibilidades de conscientização dos mecanismos subjectivos em geral, sem os quais Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos é uma necessidade; da mesma forma também o é o conhecimento da defesa estereotipada, que bloqueia uma tal consciência. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional não dissolva directamente os mecanismos inconscientes — conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia —, ele ao menos fortalece na pré-consciência determinadas instâncias de resistência, ajudando a criar um clima desfavorável ao extremismo. Se a consciência cultural em seu conjunto fosse efectivamente perpassada pela premonição do carácter patogénico dos traços que se revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traços.
Além disso seria necessário esclarecer quanto à possibilidade de haver um outro direccionamento para a fúria ocorrida em Auschwitz. Amanhã pode ser a vez de um outro grupo que não os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos divergentes. O clima ---- e quero enfatizar esta questão — mais favorável a um tal ressurgimento é o nacionalismo ressurgente. Ele é tão raivoso justamente porque nesta época de comunicações internacionais e de blocos supranacionais já não é mais tão convicto, obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos outros que ainda têm substância.
De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistência. Por exemplo, a história dos assassinatos por eutanásia, que acabaram não sendo cometidos na dimensão pretendida pelos nazistas na Alemanha, graças a resistência manifestada. A resistência limitava-se ao próprio grupo; e justamente este é um sintoma bastante notável e amplo da frieza geral. Além de tudo, porém, ela é limitada também em face da insaciabilidade presente no princípio das perseguições. Em última instância, qualquer pessoa não-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um interesse egoísta drástico a que se poderia apelar. Enfim, seria necessário indagar pelas condições específicas, históricas, das perseguições. Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os chamados movimentos de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas.
Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente.
Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a pergunta é profundamente justificável. Benjamim percebeu que, ao contrário dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas; que continue a haver Bojeis e Kaduks, contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento.
Theodor Adorno