Do tempo que aí passei até agora vão pouco mais que três anos (anos lectivos, entenda-se, porque os professores contam o tempo nesta escala de medida). Suponho que os grandes corredores, os tectos altos, a brevidade da disposição das janelas, a escadaria da entrada, estejam na mesma, embora admita a mudança de algumas carteiras, e cores, e cheiros, e sons da rádio, de professores até (não muitos). Isto significa que a José Falcão do meu tempo (expressão saudosista portuguesa, presente em todos os tempos) ainda sobrevive e por certo sobreviverá em memória.
Lembro-me perfeitamente do início, isto é, da escolha da escola de estágio ainda na Faculdade, onde o antigo liceu fazia brilhar os olhos de muitos, mais que não fosse porque era e continua a ser a escola mais bem conceituada em termos de estágio de Geografia. A bem dizer, e seguindo a verdade o mais perto possível dela mesmo, criou-se um mito à volta da José Falcão que faz com que muitos desistam à partida de um ano lectivo neste estabelecimento, porque defendem que o ano de estágio não deve ser para trabalhar muito, mas antes para ganhar energia para os duros anos seguintes, onde se conta já com a instabilidade funesta do mundo do ensino. Assim sendo, há um confronto de ideias, de orientações. Discussão de massas, onde se examinam escolas e orientadores. Estágio que desperta sentimentos: medo ou coragem; fuga ou confronto; flacidez ou firmeza; dispersão ou coerência. No meu caso escolhi: a coragem; o confronto; a firmeza; a coerência. Quer dizer que fui para a José Falcão.
E apesar de já estar na cidade há quatro anos, confesso que nunca tinha entrado na escola como escola, quer dizer, conhecia apenas o pavilhão por frequentar o académico "Chá Dançante" das inesquecíveis noites da "Queima das Fitas". Porém, o espaço físico estava sempre coberto pelo cenário, deixando de fora para ver muito pouco daquilo que efectivamente vim a descobrir.
Portanto, significa que só conhecia a José Falcão de nome, de mito e de localização. Nada mais.
Primeiro dia, primeira entrada na escola. Subo a escadaria e entro no átrio, à procura da portaria. Alguém sentado atende o telefone. O bulício dos alunos era tanto que não dava para chamar a atenção de ninguém. Entretanto passa um funcionário que eu sigo rapidamente e que me aponta o caminho para a sala de professores onde a orientadora me esperava. Os alunos já passaram e eu atravesso o átrio em tom apressado.
- A menina não pode passar aí.
Viro-me e reconheço a senhora que anteriormente estava ao telefone e que agora se dependurava toda do balcão da portaria, num jogo de corpo intimidativo. E reforça a ideia.
- Esse corredor é só para professores. Os alunos vão por outro lado.
Ficámos as duas paradas, olhando uma para a outra.
- Mas eu não sou aluna…
Não sei se ela teria razão.
A partir daquele dia, a mesma história repetiu-se com todos os outros funcionários que não me conheciam e me viam dirigir ao "corredor proibido".
Interessante este ritual de entrada na idade adulta, processo tribal no meio de uma urbe tão betonizada e estupidamente enérgica, mas pelo qual eu passei, aí mesmo na José Falcão.
Esse ano foi efectivamente duro e trabalhoso, tal como preconizavam muitos dos colegas que ficaram colocados noutras escolas. Mas valeu todo o esforço. Noites mal dormidas, horas intermináveis de computador, de acetatos, de planificações, de testes, de relatórios, de correcções, dias percorrendo os imensos corredores, as salas, as carteiras, os espaços que se foram tornando tão familiares e íntimos. Alunos e colegas de profissão que passaram a fazer parte do quotidiano. E assim, com esta simplicidade de palavras passou o ano, chegou o Verão e eu fui de férias para não mais voltar à José Falcão. Hoje não vivo nem trabalho longe desta escola, o que quer dizer que a visito muitas vezes, seja porque lhe passo à porta, seja porque volto a rebuscar experiências do estágio que me vão fazendo falta.
Em meu nome pessoal e em nome de todos os estagiários de Geografia que passaram pela José Falcão, agradeço profundamente os momentos que aí passados e que ensinaram que a vida é tudo aquilo que nós podemos. Obrigada também à Dra. Helena Carvalho, verdadeira mestre de escola e de vida, e a todos os professores do grupo de Geografia, que acolhem excepcionalmente bem os jovens colegas. Aos alunos, a todo o pessoal docente e não docente um muito obrigado pela atenção e carinho. E à José Falcão, que permanecerá além de todos: ensina os que virão como nos ensinaste a nós.
Maria de Fátima Grilo Velez de Castro
(Estagiária de Geografia na ES José Falcão, no ano de 2001/2002)