quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Editorial















« A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam.
(…) mapa das interpretações que se cruzam, como cicatrizes de sucessivas pancadas. »
(Ana Hatherly)

É uma efeméride de peso, pelos 170 anos da fundação da escola, e pelos 70 anos da construção do actual edifício. Daí esta especial reaparição do Garras, que se faz para celebrar, não tanto a criação formal da instituição ou a sua edificação, mas para recordar que sem essa plêiade de ilustres e de anónimos, professores, alunos, funcionários, que ao longo de quase dois séculos, alicerçaram o Liceu de Coimbra, o Liceu Júlio Henriques, o Liceu Normal D. João III, e a Escola Secundária José Falcão, nada haveria para comemorar.
De que se fala pois quando se diz comemoração? Certamente do impacto da memória enquanto fictícia claridade das sobreposições, como diz Hatherly, e que, exactamente por isso, se constitui como registo impreciso, limitado e obviamente lacunar. O nosso propósito – necessariamente singelo – foi evocar um momento simbólico da história desta escola, através de depoimentos de quem nela trabalhou ou ainda trabalha.
É o que o facto de o Liceu se transfigurar em colégio e mais tarde em escola, ou que em 1936 tenha passado do apertado edifício novecentista para uma colossal construção do Estado Novo, é em si mesmo pouco significativo, desde que não esqueçamos que tal só aconteceu, porque o empenho revelado por professores e alunos, determinou a necessidade de construir uma nova e mais ampla estrutura física. É assim que quando nos reportamos à decisão da criação do Liceu por Passos Manuel, até à concepção do actual edifício pelo arquitecto Carlos Ramos, é sempre da importância das pessoas que falamos, porque é delas que depende a sobrevivência de qualquer instituição, particularmente quando se trata de projectos ligados à actividade educativa. Ora esse contributo está aqui, directa ou indirectamente associado a uma impressionante lista de notáveis, de Almada Negreiros a Eça de Queiroz, de Almeida Santos a José Afonso, de Jaime Cortesão ou Eugénio de Castro a Vitorino Nemésio ou Bissaya Barreto, de Miguel Torga a Rómulo de Carvalho, enfim, um elenco avassalador.
Numa época em que se fecham escolas, alienadas à voragem da especulação imobiliária, ou pela alegada insuficiência do número de alunos, num tempo de institucional humilhação do papel dos docentes, o Garras não quis com esta comemoração, esquecer que os projectos só se realizam pelo labor, devoção e grandeza de alma das pessoas – das mais destacadas personalidades, mas em especial dos epígonos, como diz Alfredo Reis – que afinal sustentaram o Colégio, o Liceu e a Escola durante quase dois séculos.
Celebrar a escola é pois recuperar a presença - como memória de sobreposições - dos que, ao longo da sua existência, exaltaram o melhor da sua condição de professores e a sua mais rica experiência enquanto alunos. É que, tal como não há história sem a vontade e a combatividade dos homens, também não há escolas capazes de ensinar ou onde se possa aprender, sem a motivação e determinação de professores e alunos.
Esta edição especial perseguiu esse propósito. Daí que tenhamos querido saber da experiência vivida por alguns professores e alunos que por aqui passaram, outros ainda presentes e alguns dos que recentemente a deixaram. Quisemos também celebrar o espaço físico de excepção que é o José Falcão, e por isso preenchemos esta edição com uma diversidade de panorâmicas que ilustram a grandeza e a beleza deste edifício, tendo ainda contado com o trabalho do professor João Ricardo, que, na sua pesquisa sobre o projecto de construção do edifício, nos apresentou alguns exemplares do mobiliário original igualmente concebido para o efeito. Esta foi uma escola planeada de raiz, ao serviço dos que a iriam frequentar, pensada para se deixar esculpir pelo tempo dos mestres e aprendizes, uma escola que se renova em cada lição, em cada projecto, em cada momento de convívio. E é essa experiência que procuramos recuperar nesta edição, com a contribuição voluntariosa de todos os que quiseram associar-se e a quem publicamente agradecemos.
Para além dos parabéns que a Escola Secundária José Falcão inteiramente merece, o seu maior mérito é o de nos recordar uma elementar, mas cada vez mais esquecida verdade: nada do que queremos fazer numa escola se deve fazer contra as pessoas que nela trabalham, não só porque nada se pode fazer sem elas, mas especialmente porque tudo o que há a fazer, tem de ser feito por elas e para elas. São elas o segredo da sua longevidade. É disso exemplo, o discurso de Almeida Santos na inauguração das comemorações. Foi isso que José Falcão nunca esqueceu e que no José Falcão nunca se deverá deixar de lembrar!

A. Luís N. Ribeiro