quarta-feira, 5 de março de 2008

Memórias do Liceu


Entrei para o D.João III em 1965, há mais de 40 anos. Naquele tempo, nas cidades de província, os liceus tinham um peso e uma importância que hoje não têm, mesmo se, em Coimbra, esse peso se atenuasse pela concorrência desigual da Universidade. Era o único liceu masculino da cidade e começava, então, a receber os efeitos dos primeiros passos da democratização do ensino.
O Portugal urbano dos anos 60 vivia no cruzamento de influências contraditórias. Por um lado, o ambiente bafiento de um salazarismo já sem energia, esgotado política e ideologicamente, a dar sinais de um fim que se aproximava. Por outro lado, os ecos refrescantes de uma cultura jovem e contestatária que chegavam da Europa, anunciando uma modernidade que finalmente (mas timidamente) invadia a vida e as mentes portuguesas. Não se pode dizer, no entanto, que déssemos claros sinais de termos sido tocados por essa modernidade. O entusiasmo pelo sucesso dos "magriços" em Inglaterra ou pelos triunfos caseiros da Académica, era mais forte do que a consciência de que vivíamos numa ditadura ou do estado de pobreza geral em que o país vegetava. Mas o despertar para a vida, próprio da adolescência, com as suas descobertas intelectuais e afectivas, embatiam (naquele microcosmos liceal) num muro de distância e de brutalidade autoritárias que muitos hoje, na distorção saudosista da memória, confundem com a necessária autoridade pedagógica. A figura antipática de um reitor tirano e a prática de regras de disciplina absurdas, não infundiam nos jovens espíritos o respeito pela autoridade consentida nem o prazer da aprendizagem mas o medo e a desconfiança. A proibição sem sentido e a repressão conduzem à transgressão e à contestação. Daí que o prazer com que desobedecíamos ou contestávamos uma ordem ou regra, assumisse o peso de um acto heróico, por muito ridículas que hoje nos pareçam as razões. Lembro-me, por exemplo, do escândalo que perpassou quando uma jovem professora ousou apresentar-se ao serviço... de calças.
E, no entanto, é uma memória agradável, aquela que ficou. A exclusividade masculina do corpo de alunos, com os efeitos negativos que necessariamente teve na sua formação, libertou, todavia, neles um sentido de solidariedade e de cumplicidade decisivo na construção do seu caracter. Mesmo a actividade académica, vista a esta distância, apesar da severidade e formalidade das relações, tinha, não digo uma qualidade mas uma eficácia que hoje nos causa inveja. Não foi, por isso, sem emoção que vinte e quatro anos após ter abandonado o D.JoãoIII, voltei a entrar no velho edifício do José Falcão, agora como professor.



Miguel Saturnino, Professor de Filosofia

CINEFALCO


Relatar a minha passagem pelo Cinefalco é escavar um contexto muito específico a diversos níveis, é voltar a pesquisar significados num percurso indissociável de tantas outras vivências, é recordar o que foi uma
busca e, sem o saber, se revelou um achado.
Recordar não é viver de novo, mas é sem dúvida cimentar o que se viveu. É também interligar velhas encruzilhadas, clarificar um certo tom baço teimosamente subsistente. É, além deste exercício íntimo, a partilha do fortalecimento e da formação enquanto pessoa em crescimento permanente, enquanto ser em busca de algo que o definisse. Esse encontro frontal com o cinema, com um novo modo de ver o cinema e a vida no cinema, reveste-se de uma intensidade mais gritante quanto mais feroz era o desamparo e o sentimento de deriva numa escola, em todo um processo algo afastado de muito a que me pudesse socorrer ou sustentar na ânsia, natural, de crescer identificado com algo. Mesmo que essa caminhada se salpicasse pela margem, alheada dos moldes da normalidade, mesmo que nem no desvio conseguisse encontrar uma norma.
O encontro, o confronto também, não seria possível sem a figura do professor, inabalavelmente querendo ensinar a quem inabalavelmente queria aprender. Voz de agressiva inconformidade, voz de serena inquietude revelando novos trilhos sobre o ecrã sempre pairando por detrás de si, fintando as tristemente solitárias tardes de quarta-feira com a invariável vontade de estar presente. Tristes pelo desinteresse geral, tristes por um olhar que assim subsistiu tolhido em algum isolamento, mas redobrado em cumplicidade, em partilha, no sustentar de uma relação que cresceu e se alimentou em grande parte dessa persistência, desse interesse nunca derrotado, dessa fome de saber, mais forte que tudo em redor.
Do interesse em aprofundar esse olhar, à vontade em querer partilhá-lo pela escrita, percorreu-se uma considerável distância num pulo humilde mas audaz e consistente. É quando o querer saber sempre mais se alia ao fervilhar desse desejo, que o resguardar para si mesmo se torna insustentável, crescendo com incontornável força a necessidade de mostrar, de dissecar ainda mais o objecto que se ama para um público com o qual se pretendia comunicar sem barreiras, em olhar frontal de amizade e cumplicidade. Um público que se desejava e deseja participativo, leitor interessado de um jornal que sobrevivia e sobrevive pela força do trabalho, pela paixão de (de)ver feito, de saber completo um esforço comum, pela garra de se assumir vivo e tornear o entorpecimento geral.
Hoje resiste à erosão do tempo uma alegria distanciada, um conforto em saber ter acontecido, ter feito parte com mais algumas pessoas de um passado recente que deixou marcas, que subsiste indelével porque indeteriorável. Um passado que resiste intocável porque avesso a modas, tendências ou adulterações, um passado pleno de camaradagem e de amizades que resistem ao passar dos anos... as de carne e osso e as de celulóide.
Hoje o caminho é bem menos turvo e bem mais definido. As inquietações subsistem, talvez com outra roupagem, porque inquieto é todo aquele que não consegue deixar de pensar o mundo em que se encontra, que o quer agarrar em vez de cobardemente pairar sobre ele. Ao professor Luís Ribeiro agradeço muito do que posso considerar ser hoje, muito do trilho pelo qual enveredei, muito do material com que me fui construindo neste tempos. Agradeço-lhe o interesse, agradeço-lhe a vontade de acreditar e a persistência em mostrar que ao crescermos para os outros, crescemos também face a nós mesmos. As "lições", as dicas, as conversas, cinéfilas e não só, foram agarradas com força e exactidão, numa ânsia que não estagna, mas evolui, alimentando-se de si mesma num ciclo que espero interminável.


Manuel Jorge Pereira - Curso de Estudos Artísticos da U.C.

terça-feira, 4 de março de 2008

O Testamento do Dr.Mabuse

Obra-prima de Fritz Lang, Dr.Mabuse é um filme que nos conta a história de um génio do mal. Mabuse, dotado de uma lógica quase sobre-humana, utilizava a sua fascinante mente para cometer crimes perfeitos, através da hipnose, enquanto paralelamente desenvolvia a profissão de médico numa prestigiada instituição. Ao ser apanhado, foi internado no hospício do professor Baum, uma vez que, devido aos sinais de loucura que apresentava, lhe foi reconhecido o estado de insanidade mental. Durante anos, permaneceu estático, preservando um inquietante ar fantasmagórico; mas o seu estado clínico mudou, e, deixando o estado de apatia, começou a escrever palavras e frases, ao início, sem lógica, mas que progressivamente ganharam coerência. Ao organizar esses apontamentos de Dr. Mabuse, um médico do hospício, Dr. Kramm, constatou que se tratavam de instruções para cometer roubos, e que essas mesmas instruções estavam a ser seguidas por bandidos. Professor Baum, médico que acompanhava Mabuse diariamente, considerou ridícula a hipótese de que Mabuse estivesse durante este tempo a comandar toda uma estrutura criminosa de dentro da sua cela hospitalar, fingindo um estado de loucura para ter um álibi. Quando Kramm ia à polícia contar a sua conjectura, foi brutalmente assassinado.
Inspector Lohmann, inspector da polícia, procura então o responsável pelo assassinato, enquanto paralelamente investiga a história de Hofmeister, homem que lhe estava para revelar o nome de um alto criminoso quando foi atacado, tendo mais tarde sido encontrado enquanto deambulava pelas ruas, louco. A juntar a estas duas histórias, aparece a de Tom, um desempregado que, para sobreviver, é obrigado a juntar-se ao mundo do crime, donde quer, mas não consegue, sair. Observamos o desenrolar destas três histórias que se acabarão por fundir, tendo como elemento de ligação Dr.Mabuse. Semeando o caos, Mabuse pretende instaurar um império do crime. Apesar de chegar a morrer fisicamente (ou pelo menos criando essa ilusão), o espectro de Mabuse assume o corpo do professor Baum, que já anteriormente tinha dado provas de não conseguir resistir ao poderoso controlo mental que sobre ele exercia. Foi partir deste que Mabuse organizou a sua rede criminosa, que comete crimes perfeitos não pelo dinheiro mas sim para criar a confusão e o medo, para alcançar o tal estado de anarquia. Ao descobrir isto, com a preciosa ajuda de Tom, Lohmann e este tentam capturar o professor Baum, que irá aparecer no hospício, irremediavelmente louco.Este é um policial expressionista em que o vencedor não é nem a polícia, nem o criminoso; antes a loucura. Mabuse é a sua personificação; o seu rasto é composto pelas vítimas que arrasta consigo, casos de Hofmeister e de Baum. Ninguém escapa à proximidade de Mabuse; ninguém escapa à proximidade da loucura. Somos todos confrontados com ela, e embora possamos não ser seus escravos, ela acaba por ter pelo menos uma interferência indirecta na nossa vida. A loucura é a confusão, o inesperado, algo que escapa ao nosso alcance lógico; produz em nós um estado de estupefacção, de receio, pois não entendemos a situação. O homem tem medo da loucura, tem medo daquilo com que não está habituado a deparar-se; a única forma de vencer o medo e a loucura, é não fazer de conta que não existe, e enfrentá-la.Uma obra capaz de mostrar uma realidade dura, em que os problemas acabam por não se conseguir travar, mas apenas atenuar. Não há, por isso, nenhum salvador que apareça para derrotar o mal para que o bem prevaleça; como acontece na realidade, há certas coisas que escapam ao nosso domínio; o nosso dever é tentar compreendê-las, mas nunca com a prepotência de sobre ela criarmos axiomas.
Uma obra de belo efeito, onde mais uma vez o
famigerado jogo de sombras expressionista nos proporciona imagens excelentes e onde os efeitos especiais são de grande qualidade (não só para a época, visto que o filme data do ano de 1933, como também quando comparado com alguns que são feitos hoje em dia). É também uma obra que se revela muito importante na caracterização do ambiente cultural, social e económico da época. Todo o ambiente de degradação que a Alemanha experimentou depois da primeira guerra mundial aparece expresso no filme. O desemprego, o responsável pela associação de Tom ao mundo do crime, é um bom exemplo disto.
O filme pode ser ainda interpretado como um alerta para o perigo nazi, uma crítica acérrima à loucura política. Na época, este partido ganhava cada vez mais expressão, aproveitando-se (tal como a rede criminosa de Mabuse) daqueles que viviam na miséria e que estavam por isso mais expostos a serem influenciados. Este filme foi proibido na Alemanha nazi, que chegou, no entanto, a oferecer a Fritz Lang o cargo de dirigente cinematográfico do país. Não se sabe se o realizador terá dito que precisaria de um dia para decidir, ou se terá prontamente aceite. Certo é, que no dia seguinte, Fritz Lang tinha partido para a América, declinando o convite da loucura.


João Alberto - 11º5 nº9

Memória Figurativa


sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Percursos da Memória





Formação de Professores - Depoimentos


Do tempo que aí passei até agora vão pouco mais que três anos (anos lectivos, entenda-se, porque os professores contam o tempo nesta escala de medida). Suponho que os grandes corredores, os tectos altos, a brevidade da disposição das janelas, a escadaria da entrada, estejam na mesma, embora admita a mudança de algumas carteiras, e cores, e cheiros, e sons da rádio, de professores até (não muitos). Isto significa que a José Falcão do meu tempo (expressão saudosista portuguesa, presente em todos os tempos) ainda sobrevive e por certo sobreviverá em memória.
Lembro-me perfeitamente do início, isto é, da escolha da escola de estágio ainda na Faculdade, onde o antigo liceu fazia brilhar os olhos de muitos, mais que não fosse porque era e continua a ser a escola mais bem conceituada em termos de estágio de Geografia. A bem dizer, e seguindo a verdade o mais perto possível dela mesmo, criou-se um mito à volta da José Falcão que faz com que muitos desistam à partida de um ano lectivo neste estabelecimento, porque defendem que o ano de estágio não deve ser para trabalhar muito, mas antes para ganhar energia para os duros anos seguintes, onde se conta já com a instabilidade funesta do mundo do ensino. Assim sendo, há um confronto de ideias, de orientações. Discussão de massas, onde se examinam escolas e orientadores. Estágio que desperta sentimentos: medo ou coragem; fuga ou confronto; flacidez ou firmeza; dispersão ou coerência. No meu caso escolhi: a coragem; o confronto; a firmeza; a coerência. Quer dizer que fui para a José Falcão.
E apesar de já estar na cidade há quatro anos, confesso que nunca tinha entrado na escola como escola, quer dizer, conhecia apenas o pavilhão por frequentar o académico "Chá Dançante" das inesquecíveis noites da "Queima das Fitas". Porém, o espaço físico estava sempre coberto pelo cenário, deixando de fora para ver muito pouco daquilo que efectivamente vim a descobrir.
Portanto, significa que só conhecia a José Falcão de nome, de mito e de localização. Nada mais.
Primeiro dia, primeira entrada na escola. Subo a escadaria e entro no átrio, à procura da portaria. Alguém sentado atende o telefone. O bulício dos alunos era tanto que não dava para chamar a atenção de ninguém. Entretanto passa um funcionário que eu sigo rapidamente e que me aponta o caminho para a sala de professores onde a orientadora me esperava. Os alunos já passaram e eu atravesso o átrio em tom apressado.
- A menina não pode passar aí.
Viro-me e reconheço a senhora que anteriormente estava ao telefone e que agora se dependurava toda do balcão da portaria, num jogo de corpo intimidativo. E reforça a ideia.
- Esse corredor é só para professores. Os alunos vão por outro lado.
Ficámos as duas paradas, olhando uma para a outra.
- Mas eu não sou aluna…
Não sei se ela teria razão.
A partir daquele dia, a mesma história repetiu-se com todos os outros funcionários que não me conheciam e me viam dirigir ao "corredor proibido".
Interessante este ritual de entrada na idade adulta, processo tribal no meio de uma urbe tão betonizada e estupidamente enérgica, mas pelo qual eu passei, aí mesmo na José Falcão.
Esse ano foi efectivamente duro e trabalhoso, tal como preconizavam muitos dos colegas que ficaram colocados noutras escolas. Mas valeu todo o esforço. Noites mal dormidas, horas intermináveis de computador, de acetatos, de planificações, de testes, de relatórios, de correcções, dias percorrendo os imensos corredores, as salas, as carteiras, os espaços que se foram tornando tão familiares e íntimos. Alunos e colegas de profissão que passaram a fazer parte do quotidiano. E assim, com esta simplicidade de palavras passou o ano, chegou o Verão e eu fui de férias para não mais voltar à José Falcão. Hoje não vivo nem trabalho longe desta escola, o que quer dizer que a visito muitas vezes, seja porque lhe passo à porta, seja porque volto a rebuscar experiências do estágio que me vão fazendo falta.
Em meu nome pessoal e em nome de todos os estagiários de Geografia que passaram pela José Falcão, agradeço profundamente os momentos que aí passados e que ensinaram que a vida é tudo aquilo que nós podemos. Obrigada também à Dra. Helena Carvalho, verdadeira mestre de escola e de vida, e a todos os professores do grupo de Geografia, que acolhem excepcionalmente bem os jovens colegas. Aos alunos, a todo o pessoal docente e não docente um muito obrigado pela atenção e carinho. E à José Falcão, que permanecerá além de todos: ensina os que virão como nos ensinaste a nós.

Maria de Fátima Grilo Velez de Castro
(Estagiária de Geografia na ES José Falcão, no ano de 2001/2002)

Formação de Professores - Depoimentos


Não fui aluna do Liceu D. João III, mas, quando nele entrei (corria o ano de 1975), para fazer o meu estágio pedagógico de professora de liceu, curiosamente não senti qualquer dificuldade de adaptação. Era como se estivesse em casa, como se regressasse… "Surpresa de uma tal serenidade, /toda eu intimamente me sondava" (obrigada pela ajuda, Augusto Gil), mas depressa percebi que, saída da Faculdade de Letras de Coimbra, vinha habituada ao convívio com o rei D. João III, que dava habitualmente audiência no Pátio da Universidade. Quando dele me despedi no final do meu Curso, estranhei que ele me dissesse "até breve!". Mas, ao entrar no querido edifício do velho Liceu D. João III, entendi: era a mesma figura tutelar que acompanhava os meus passos. Favores reais! E não era pequena honra entrar numa Escola que, no passado, chegara a ser a única instituição do País, onde funcionavam os estágios pedagógicos a nível secundário.
O estágio, visto a distância, filtrado por informações díspares de colegas que me haviam precedido, não se pode dizer que fosse algo muito tranquilizante para mim, que era tão feliz na Universidade. Na altura, os orientadores de estágio eram uns seres que, segundo a tradição, infundiam respeito, admiração e… temor. Pobres estagiários! Mas a ideia era falsa, estava errada (há sempre quem goste de assustar os neófitos…), porque os professores orientadores de estágio que encontrei, a Dr.ª Maria Alice Nobre Gouveia (que, a esta hora, deve estar a ensinar os anjos), o Dr. José Bernardo Cardoso Margarida, mestre venerado, e a Dr.ª Maria Edite Ferreira, em boa hora chamada, apesar de tão jovem, a estes trabalhos de formação, se encarregaram de, rapidamente, me mostrar que, nesta Casa, nunca houve conflito de gerações e que os trabalhos de estágio eram, afinal, outra forma de dizer encontros de amigos, uns mais sábios e experientes que outros, evidentemente. Aprendi muito, porque de todos recebi ajuda. Até dos queridos funcionários da Escola, que apoiaram uma jovem de 22 anos! Ainda hoje, 30 anos volvidos (não há mal nenhum em dizer a idade que se tem… mas vale a pena dizer que foram todos passados na mesma Escola), quando tenho a alegria de encontrar o Dr. Margarida e a sua barba patriarcal, nunca isenta de ternura, é com gratidão e inalterável simpatia que o cumprimento. E muito respeito! Continua a ser o "meu" orientador. Só meu? Perguntarão. Então e os outros estagiários? Respondo: só meu, porque a relação pedagógica é como a relação amorosa, mais do que dois é um contra-senso.
Ao recordar estes mestres caríssimos, que me iniciaram na minha profissão (a Dr.ª Edite Ferreira, essa, mais do que orientadora, foi uma espécie de irmã mais crescida, que ainda o é agora), penso, inevitavelmente, nos quase incontáveis alunos a quem, ao longo dos anos, transmiti a mensagem. Quando digo "incontáveis", sinto que a palavra é uma força de expressão, porque de todos os alunos que tive (e tenho) guardo uma recordação inolvidável. Talvez não sejam 500 ou 830 (eu sei lá! Só usando uma máquina de calcular!), mas os seus rostos vão ocupando, no tempo, os espaços cativos da galeria dos meus afectos.
E, quando alguns deles vierem, por seu turno, a ser estagiários na nossa Escola, se eu ainda cá estiver, recebê-los-ei naturalmente com um "sede bem-vindos!", que, na minha memória ecoará o "até breve" que ouvi, há muitos anos, da boca de mármore duma estátua de um rei.

Dr.ª Maria da Graça Pulquério
Professora
do 8.º Grupo A

Formação de Professores - Depoimentos


Recordar é, provavelmente, um acto imperfeito, cujo resultado é sempre lacunar, fragmentário. Podem-se recriar sensações, impressões, episódios, mas estes estarão sempre definitivamente marcados pelo fluir do tempo.
Assim, porque recordar é olhar o passado com os olhos do presente, relembro os dias que passei na Escola Secundária de José Falcão, consciente de que o tempo que me separa dessa época e as experiências por que passei noutras escolas mudaram as minhas impressões sobre esta instituição, onde ingressei como professora estagiária em 1994.
Inicialmente, pouco ou nada sabia sobre a escola, mas atraiu-me a ideia veiculada pelos meus colegas de curso que a consideravam "muito exigente" e "pouco atractiva". Este facto permitiu-me escolher as colegas com quem iria trabalhar, o que veio a revelar-se uma opção acertada.
Desse primeiro ano como professora, guardo na memória espaços, pessoas, sentimentos, e não tanto episódios, que se foram esbatendo e diluindo. Recordo como me senti um pouco curiosa e receosa perante aquele grande edifício antigo, acinzentado, rasgado por múltiplas janelas, em cujo interior longos corredores se sucediam, alguns surpreendentemente vazios, outros assemelhando-se a alas de um museu. Nestes, a profusão de objectos cuidadosamente expostos, um velho piano abandonado e o "Quadro de Honra", então vazio, surgiam como testemunhos inesquecíveis de outros tempos. As muitas portas que regularmente se alinhavam ao longo dos corredores abriam-se para salas de aula, com os seus altos estrados que, ao mesmo tempo, me expunham e protegiam dos olhares interrogadores dos alunos quando sentiam a minha insegurança e inexperiência.
Este ambiente silencioso e calmo era apenas momentaneamente quebrado quando os alunos ruidosamente enchiam os corredores entre uma aula e outra. Então, durante alguns minutos, o velho edifício parecia ganhar novo alento.
Recordo-me também do acolhimento distante dos outros professores, que olhavam com alguma indiferença e desconfiança para os muitos estagiários como eu, que ainda se sentiam pouco à vontade no seu novo papel. Longas horas se passaram a escutar as alegrias e tristezas de cada um, aulas foram contadas ao pormenor, ditos e comentários de alunos amplamente discutidos, momentos em que partilhámos o cansaço e a euforia que sentíamos.
Vem-me ainda à memória as minhas orientadoras, as professoras Leocádia Regalo e Clara Sobral, que ouvíamos, por vezes, com algum temor quando os incentivos, que sempre nos davam, se tornavam em críticas… As muitas aulas em que, do fundo da sala, o seu olhar avaliador se cruzava com o apoio silencioso das minhas colegas.
Guardo principalmente os rostos dos meus primeiros alunos, uns ainda muito jovens, alegras e sempre prontos para novos desafios, e outros mais compenetrados, já preocupados com o dia em que deixariam aquela escola para seguir os seus sonhos.
Só anos mais tarde, quando regressei, me senti verdadeiramente uma dos muitos professores que trabalhavam nessa escola. Liberta da tensão que um estágio acarreta, passei a vê-la como um local acolhedor, estimulante, que exigia, mas também nos aliciava a dar o melhor de nós. É por isso que, ainda hoje, ela permanece tão viva na minha memória e ocupa um espaço muito especial entre todas as outras escolas por onde passei.


Dr.ª Teresa Belo
Professora do 8.º Grupo B

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Formação de Professores - Depoimentos

A exposição bibliográfica e documental intitulada 70 Anos de Formação em Inglês-Alemão, que teve lugar na nossa Escola, na Sala Leitão de Figueiredo, em Junho de 2006, integrava uma secção de materiais relativos ao período de formação inicial de docentes em Inglês, que decorreu sob a minha orientação pedagógica, de 1988 a 2004, com um ano apenas de interrupção. Dei a essa secção o título 15 Anos de Formação em Inglês - «Manuais» e Planos de Aula.
Aquilo que designei por «manuais» são alguns livros (45) donde extraí, ao longo destes anos, os textos que serviram de base para as minhas aulas e estiveram sempre, esses e muitos outros, à disposição das/os formandas/os. Uns são clássicos da literatura em língua inglesa, outros descobertas pessoais mais recentes, ou resultado da troca de materiais entre colegas e no núcleo de estágio.
Juntamente com diversos livros, revistas e jornais, dos quais saliento o Guardian Weekly e o New Internationalist, reproduções de obras de arte, filmes, documentários, peças de música, etc., eles constituíram os «manuais», substituindo os adoptados, num trabalho de acompanhamento crítico dos programas, preconizado pela Área de Estudos Anglo-Americanos da FLUC e por mim apoiado.
Foi rápida a selecção dos «manuais» para a exposição; mais difícil a selecção da selecção dos planos de aula. Era demasiado comovente re-ver o trajecto de pesquisa, preparação, acompanhamento, planificação e avaliação de tanta aula, remexer em tanto trabalho, reviver tantas emoções e, ainda hoje, me interrogar sobre se proporcionei a melhor preparação possível. É cedo para proceder a tal reflexão. Precisava de fazer novas leituras, recolher testemunhos, perceber em que caminho estão, que ideias fecundaram, até que ponto é que o estágio lhes foi útil e memorável. Tranquilizou-me pelo menos ouvir a Luísa Pires, professora estagiária no ano lectivo de 1999-2000, presente na Mesa-Redonda sobre 70 Anos de Formação em Inglês- Alemão, lembrar uma observação que fiz ao grupo no fim do estágio: «O estágio começa agora!»
Ah! Tinha-as/os felizmente alertado para a realidade que iriam enfrentar: depois do estágio e ao longo de toda a vida profissional há muito para aprender. O seu desenvolvimento profissional estava agora nas suas mãos.
Hoje, aqui, prefiro falar do «meu estágio», ou seja, da minha tarefa de orientadora, apenas em termos de perdas e ganhos pessoais. O que perdi com a orientação? O que ganhei?
De todas as perdas e ganhos deixem-me salientar só dois aspectos. Perdi alguma espontaneidade nas aulas, como se a responsabilidade do papel que exercia me obrigasse a uma perfeição de desempenho profissional modelar, que em certa medida me espartilhava, embora, felizmente, nunca tivesse perdido o meu estilo pessoal. Lembro-me com saudades do tempo em que era apenas professora, e da proximidade que criava com as turmas que acompanhava ao longo e dos anos e dos projectos que com elas desenvolvia. Preparar uma turma, cedê-la para regências e recuperá-la num só ano, é estranhamente um acto de partilha e perda dolorosa, pois a turma nunca vem inteira. Algo ficou já pelo caminho!
Paradoxalmente o que mais ganhei foi a liberdade que a orientação pedagógica nos confere. Por exemplo, a liberdade de substituição do manual, com selecção pessoal de materiais alternativos, fomentada pela entidade supervisora do estágio de Inglês como experiência de formação. O exemplo deve vir de cima e eu não me fazia rogada…Tinha o cuidado de remeter a
turma para o manual, usando-o de vez em quando e com reservas, como fonte de informação e prática para trabalho de casa.
Mas o uso de bons materiais, como já disse noutro lugar, é viciante, e, em pouco tempo, é a própria turma que reclama o uso de textos interessantes e de qualidade a que se habituou. Não me recordo, desde que pus em prática essa liberdade, de alguma vez me ter sentido aborrecida numa aula ou de ter notado aborrecimento pela parte dos/as alunos/as. Pelo contrário, lembro-me do gozo da preparação, do desafio da folha em branco e de todo o trabalho até à construção definitiva dos materiais. Lembro-me de alunas/os, por vezes para espanto de si próprios, inesperadamente, a desbravar e a ligar sentidos, e a ligarem-se aos sentidos crítica e afectivamente. E eu contente por lhes deixar nomes, referências, pistas de comunicação e solidariedade com o mundo. E elas/eles contentes porque o poço era fundo mas todos bebiam da sua água!
As aulas passavam depressa demais e não chegavam para os textos maravilhosos que havia para dar. E as regências roubavam aulas. Eu cedia textos. Ou guardava textos! Mas por vezes o tempo não chegava e um texto ficava por dar.
Se algo me dói na aposentação é a aula não dada, a voz não ouvida.

Clara Condesso
professora do 9º Grupo - A

Formação de Professores


A Escola Secundária José Falcão, antigo Liceu Normal D. João III, tem sido pólo de formação e de profissionalização de professores, durante largas décadas. Neste estabelecimento de ensino, passaram várias gerações de estagiários e de formandos, acompanhados por orientadores pedagógicos dedicados, exigentes, disponíveis no seu profissionalismo, que percorreram com eles o trilho sinuoso do estágio pedagógico.
Duas professoras acederam ao convite de deixar o seu depoimento sobre as vivências e experiências colhidas, nessa fase tão marcante da carreira profissional. Do mesmo modo, duas orientadoras fizeram uma evocação do tempo em que acompanharam a formação pedagógica em modelos diversificados, segundo os decretos que a foram regulamentando - contribuindo assim para uma visão plurifacetada da orientação/ supervisão, nesta Escola, que abriu as suas portas a muitos núcleos de estágio, em todos os grupos disciplinares.
Clara Sobral
Leocádia Regalo
Professoras do 8.º Grupo B

Pedem-me para recordar os anos de 1990 a 1999, como orientadora desta Escola.
Reviver todos esses anos é lembrar como, em cada ano, se constituía uma nova família que, ao longo dos anos, se ia alargando.
Na verdade eram estágios diferentes. A convivência diária muito próxima em que vivíamos levou a orientadora a transformar-se, quantas vezes, em mãe, amiga, confidente e enfermeira. Posteriormente, até madrinha para alguns.
Passados todos estes anos, foram-se assim cimentando muitas amizades que perduram.
Maria Manuel Pimentel
Professora do 8.º Grupo A

AAAPF



Foi no dia 19 de Abril de 2006, que se constituiu a Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários do Liceu D. João III /Escola Secundária José Falcão, na presença Sr. Director Regional de Educação do Centro, Dr. José Silva; do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Coimbra e antigo aluno do Liceu D. João III, Dr. Carlos Encarnação; do Sr. Presidente do Conselho Executivo da Escola Secundária José Falcão, Dr. Etelvino Rodrigues; do Sr. Presidente da 'Comissão Executiva das Comemorações' dos 170 anos do Liceu de Coimbra e dos 70 anos do Liceu D. João III / Escola Secundária José Falcão, Dr. Jorge Carvalho; do representante dos antigos alunos, Sr. Álvaro Perdigão e do representante dos antigos funcionários, Sr.ª D.ª Fernanda Fonseca.
Cumpre porém realçar todo o empenho, dedicação e saber jurídico demonstrados pelo Presidente do Conselho Executivo da Escola, Dr. Etelvino Rodrigues. Fica-se-lhe a dever a elaboração dos Estatutos, o desencadear de todos os procedimentos no sentido da constituição da Associação e o acto solene da escritura notarial pública.

OBJECTIVOS DA ASSOCIAçãO
Foi apoiada na experiência cultural do 'Projecto Cultural na Escola' e na dinamização do Programa de 'Coimbra, Capital Nacional da Cultura 2003' que fui buscar as lições para atingir os objectivos desta Associação, e que estão consignados nos Estatutos (Artigo 4.º):
a) Manter, consolidar e vivificar os laços que unem os seus antigos alunos, professores e funcionários;
b) Implementar actividades de carácter cultural, artístico, desportivo, recreativo e social, dentro e fora da Escola, visando a aproximação intergeracional dos seus membros;
c) Promover o estudo, preservação e divulgação da história deste centenário estabelecimento de ensino e sua relação com a cidade e o país;
d) Contribuir para o engrandecimento e prestígio do Liceu D. João III / Escola Secundária José Falcão;
e) Colaborar com a Escola Secundária José Falcão e com os poderes instituídos em tudo o que seja consentâneo com os fins da Associação."
A Associação é... está na Escola:
- a sede é na Escola;
- os associados são antigos elementos da Escola;
- o seu historial (a génese, o desenvolvimento) constituiu-se na Escola;
- o seu grande objectivo é a aproximação entre os seus membros e a ligação intergeracional de pessoas que têm em comum a pertença à Escola.
No centro da Associação, sempre a Escola Liceu D. João III ou Escola Secundária José Falcão a escola de ontem, mas também a escola de hoje.
Sabemos que a interligação Liceu/Escola com as pessoas é uma realidade e há que a assumir por inteiro. As parcerias, os protocolos e os acordos são imprescindíveis, quer com a autarquia e a universidade, quer com associações afins e grupos/organismos culturais e artísticos bem como com os órgãos de comunicação social local, regional e nacional. A Associação deverá ser um organismo activo, integrador, intergeracional, dentro de uma perspectiva enriquecedora.
Dra Palmira dos Santos Albuquerque
Professora aposentada do 8.º Grupo B e Presidente da "Comissão Instaladora"

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Escola, liberdade e valores














Regresso a este Liceu, a esta fonte dos meus saberes, sessenta anos depois de, após as férias do meu sétimo ano, ter vindo aqui receber das mãos do então reitor, o prémio nacional de melhor aluno desse ano escolar. Vim após as férias porque fiz questão - já então por escrúpulos de ideologia nascente - de não ter querido recebê-lo na cerimónia oficial, rescendente a Mocidade Portuguesa, que teve lugar no fim do ano escolar, para entrega desse e outros prémios. O reitor não deixou de me cobrar essa recusa. Hoje, orgulho-me dela. Espero o vosso perdão para esta pequena vaidade. Aqui vivi, a aprender, tantos anos quantos de pastor Jacob serviu. Sete anos, não sete dias. Entrei de calções e saí de calças compridas e de capa e batina, esse espantoso refúgio dos alunos pobres que tapa o frio, resiste ao calor, e se jacta, valorizado, dos seus próprios rasgões. Não foram, para mim, anos penosos. Os exercícios, para mim, não eram difíceis; os exames quase um passeio; a absorção de saberes um deleite. Findo o terceiro ano, limite da obrigatoriedade de pertencer a ela, risquei-me da Mocidade Portuguesa. Não já por atitude política. Era cedo para isso. Mas para libertar o sábado de penosos programas paramilitares.(…).
Tive excelentes professores. Metodólogos, muitos deles. Recordo-os com gratidão e saudade. E encontrei aqui algumas das mais fiéis e duradouras amizades de sempre. Com alguns desses amigos - os mais próximos, fui reunindo em reencontros de amizade pautados por inolvidáveis recordações. O último desses convívios teve lugar há apenas alguns meses. Tenho sempre a sensação de que amizades dessas – anterior às divisões dos egoísmos familiares, das profissões, dos interesses e das ideologias - não voltou a haver. Saí daqui - saímos daqui - com uma boa formação geral. Nesse tempo, a unidade do saber, princípio a que agora tende a regressar-se, era levada a sério. E o próprio peso da ditadura política que pairava sobre toda a vida nacional, encontrava tempero em professores que estavam longe de lhe respeitar os constrangimentos. Alguns dos meus professores influenciaram mesmo a minha posterior opção política.
Sessenta anos são muito tempo. Talvez por isso, recebi com desvanecimento e com júbilo o convite do Ilustre Presidente do conselho Executivo do meu velho liceu, que em boa hora recuperou o seu honrado nome, para proferir esta descolorida comunicação, que pretende ser a minha homenagem a todos os que aqui trabalham e aprendem, ao meu antigo liceu, à memória dos meus mestres e à recordação dos seus alunos meus contemporâneos.
2. Descendente de uma família de professores, conservo da escola a ideia platónica de que, nela, se educa o cidadão para a virtude cívica e ética. É sabido que Platão via na criança a cidade grega em ponto pequeno. Em seu juízo, expresso na ''Republica'' e nas ''Leis'', a estabilidade da ''polis'' decorria directamente do enraizamento das regras certas na alma do futuro cidadão, gerando nele disposições salutares. ‘‘Um homem bem educado - sentenciou - será também um homem virtuoso''. Adaptando à defesa da educação a sua famosa alegoria da caverna, Platão afirmou que, sem educação, ''o povo continuaria na caverna, de costas para a luz, acorrentado a um mero jogo móvel de sombras, sem saber que, fora dela, brilha a verdade''. Dói-me ter de relembrar que, nos meus tempos de estudante de Coimbra, a chaga do analfabetismo rondava os 70% da população portuguesa. Como foi isso possível, tanto tempo depois do século das luzes? Com o fim da civilização grega, o advento da civilização romana, e o despertar do cristianismo, a sabedoria e a ciência deixaram de ter específicos deuses pagãos, e em nome do novo deus único privilegiou-se a fé, desvalorizando o conhecimento.
Até ao dealbar do Iluminismo, e mesmo depois disso, saber ler e escrever foi um privilégio de casta, com refúgio seguro nos mosteiros, Os próprios reis não raro se faziam substituir por leitores e escribas, pela razão elementar de que não sabiam ler nem escrever. O primeiro grande impulso dado a políticas de educação foi dado pelas revoluções liberais. No nosso país, a primeira República, a compensar os erros e os excessos em que também incorreu, teve a coragem - à época bem precisa – de privilegiar a difusão do conhecimento e do espírito científico. Volta-se hoje a esse tipo de linguagem.
Foi o tempo da criação de Escolas Normais, incumbidas de preparar os professores; o tempo de dignificação do professorado, o tempo de desescolastização do ensino.(…)O Estado Novo tentou recuperar o escolasticismo, a natureza confessional e a pedagogia politicamente direccionada do modelo de ensino anterior à República. Mas só em certa medida o conseguiu, Foi já com a Revolução de Abril que um vento de mudança procurou arejar de novo o sistema educativo herdado. Revolução caracterizada pelo excesso, foi, a esse respeito, não raro excessiva. Entretanto, uma outra revolução - a tecnológica- estava minando os alicerces do mundo anterior a ela. Persistentemente, continuou a miná-los. E passaram a justificar-se rupturas onde só continuaram a ter lugar reformas. Resultado: três décadas depois de Abril, o nosso sistema educativo é ainda, globalmente, e em certo sentido, um caos inordenado.
Assim basicamente porque, nas últimas décadas, uma espécie de sismo de grau nove da escala de Richter desabou sobre todos os modelos anteriores à revolução tecnológica: políticos, económicos, sociais e culturais. Educativos também, naturalmente. O mundo era um e ficou outro. Era grande, distante, ignoto, parcelado em unidades nacionais e estaduais, deveio pequeno, próximo, devassado e único. Abateram-se as fronteiras; avizinharam-se os antípodas; instantaneizaram-se as comunicações; facilitaram-se as deslocações e os contactos. O impensável aconteceu. Comunicamos hoje, sem fios, à velocidade da luz. Deslocamo-nos agora a velocidades superiores à do som. Muito do que era plural, deveio singular. Único – ou globalizado, como correntemente se diz - é o espaço terrestre, o ciberespaço, é o mercado. Globais são as informações, as notícias, as diversões, as bolsas, os "offshores", as máfias do crime organizado. Redutíveis à unidade tendem a ficar as identidades. A recebermos sistematicamente as mesmas notícias; a assistirmos, via televisão, aos mesmos espectáculos, a lermos, em tradução os mesmos livros; a navegarmos na mesma Internet; escravos da mesma publicidade, dos mesmos consumos das mesmas modas e das mesmas marcas; dependentes das mesmas tecnologias; envergando as mesmas "t-shirts"; Comendo à pressa os mesmos "hamburgueres"; trauteando as mesmas canções, que espaço fica para a preservação das identidades pessoais, regionais e nacionais? Até nesse aspecto o mundo ameaça ficar único! Mais relevante que tudo isso: a nossa dependência da informática, da electrónica e da cibernética. Isto é: dos instrumentos de que a ciência e a técnica se servem para, progressivamente, ir tornando global o que era circunscrito, e único o que era plural.
Ainda não sabemos qual o ponto de chegada desta revolução globalizadora. Talvez um Estado global, uma federação planetária, um governo mundial. Não faltará quem resista. Mas será cilindrado. Entretanto, a globalização avança sem organização e sem regras, às costas das velhas instituições e dos velhos modelos organizativos e funcionais. Quem não percebe que esta espécie de resistência à Nova Ordem Mundial, de que tanto se fala, e tão pouco se cuida, é fonte de desequilíbrios políticos, económicos, socais, culturais, ecológicos e outros de que já estamos a pagar o preço?
Um desses desequilíbrios, porventura o mais, grave, consiste no facto de continuarmos a fazer de contas que não sabemos que o computador, a televisão, a Internet – de banda curta e agora, sobretudo, a de banda larga – o telemóvel, ferramentas de que a civilização informática, electrónica e cibernética se servem para mudar radicalmente as nossas vidas, constituem salas de aula virtuais da escola - outra a que por comodidade chamarei mediática, "a latere" da escola clássica. Essa escola-outra, apesar de como tal não considerada, tem hoje mais influência e influência mais decisiva e duradoura, na educação - deseducação e na formação- deformação do cidadão moderno. Aparentemente, ainda não tomámos consciência disso. (…) Com a agravante de que o sistema escolar mediático é lúdico - lecciona ao domicilio, não exige propinas, não passa exercícios de casa, não marca exames nem dá notas, não exige esforços de raciocínio ou de memória, distrai e diverte - enquanto que a escola oficial é o contrário de tudo isso. Essa agravante, aliás, não é a única. Pois também agrava os defeitos da escola mediática o facto de ser a única escola que lecciona do berço à cova. Matricula a criança mal ela aprende a premir uma tecla ou a rodar um botão, e nunca mais a larga até ao fim dos seus dias. Inscreve na criança os mais incipientes saberes, sendo dela o mais das vezes, a única ''baby sitter'', sempre que os pais trabalham e não têm posses para pagar a uma outra. Entre a televisão e a rua, - escola de más tentações - os pais, apesar de tudo, preferem a televisão. A criança confunde a ficção com a realidade? Confunde. Familiariza enquanto plasticina moldável, com os anti-valores do breviário do consumismo, da competição, da violência, do hedonismo e da pornografia? É um facto. Mas é o preço que a vida moderna exige do que resta da família. Foi primeira escola. Antes mesmo do pré-primário, educava. Não educa mais. Agora, quando chega à escola oficial, a criança leva a mochila mental de três a quatro mil horas de televisão, se as estatísticas não mentem. Ainda não sabe ler - longe disso – e é já um ''zappeur'' de elite. Já se disse que, ''após vinte e quatro imagens de ficção, a vigésima quinta é verdadeira''. Será preciso levar tão longe a conta?
Psicologicamente dependente do sensacionalismo televisivo, sem o espaço de um raciocínio, assim se manterá até ao fim da vida. Teleruminará, até ao ultimo suspiro. Dito isto, teremos direito a espantar-nos com as saltas percentagens do absentismo e do insucesso escolar? Identificado com o herói dos filmes da TV, que mata que se farta, e no fim, em vez de ir para a cadeia, vai para a cama com a rapariga loura, como convencer o aluno oriundo de uma família pobre, que preenche o vazio de casa dos pais com a flandulagem da rua, de que deve queimar as pestanas a estudar para no fim ganhar o salário mínimo, ou mesmo engrossar a multidão dos que procuram trabalho?
Vertiginosamente se vulgariza também a Internet, com as mesmas e outras seduções. Constitui um assombroso centro de dados que dispensa a memória e põe ao dispor do navegador do espaço todas as informações, todas as notícias, todas as bibliotecas, todas as discotecas, todas as opiniões, todas as almas gémeas unidas por interesses, paixões ou revoltas comuns, organizadas em ágoras virtuais que com o tempo se institucionalizam, veio para provocar no Mundo moderno por ora mais inapreensível revolução civilizacional. O voto electrónico é já uma experiência consumada. Os parlamentos virtuais ameaçam ser outra. A democracia electrónica ameaça abalar os alicerces da democracia parlamentar e pluripartidária. A democracia directa ameaça desalojar a representativa. É um regresso às origens. E, descendo a operações e realidades mais triviais, através da Internet, e sem sair de casa, já hoje se compra, se vende, se movimentam depósitos, se pagam impostos, se preenchem formalismos, se namora, se casa e se descasa. (…)
O seu escopo, e a sua preocupação, são bem outros: agradar para conquistar altos níveis de audiência; através desta, rácios confortáveis de publicidade; em pagamento disso, receitas que lhe assegurem a sustentabilidade e um lucro satisfatório. Esta lógica é demencial para uma escola tão influente na educação e formação do cidadão de hoje e de amanhã. Mas é a lógica a que as escolas mediáticas obedecem. Produzem seres consumistas, competitivos, egoístas, violentos, amorais? Paciência! A alternativa seria falirem por não agradarem o bastante.
3. Que fazer?
Confesso que não sei. Sei, sim, que não é fácil a resposta. A informação, herdeira da liberdade de imprensa, nasceu, pois, como uma liberdade. E como tal continua.(…) Ainda não surgiu uma só ideia redentora! Tendo a pensar que, se o mal está na lógica mercantil que domina a actividade das escolas mediáticas; e se essa lógica é afinal a que preside à actividade económica toda ela, o que se faz mister é por em causa, na definição da Nova Ordem Económica e Política do futuro, os princípios da livre competição e do máximo lucro, ou sejam os dogmas da economia ultra-liberal. Ter a coragem de desrespeitar a memória do Sr. Adam Smith e a mentira dos equilíbrios da sua ''mão invisível''. Invisual é o que ela é, porque não vê que, ao ter ficado só em campo, liberta da competição do modelo colectivista do Leste Europeu, multiplicou o número de pobres, analfabetos e desempregados. Um em cada três seres humanos é já hoje pobre, analfabeto ou desempregado. E esse número cresce sem cessar!. Que mais precisamos para levar a mão invisual ao oftalmologista, condenando-a a ver o resultado das suas mentiras? De resto, a dita sociedade do conhecimento, da técnica e do saber, vai por em causa tudo isso e exigir uma revolução nos modelos e equilíbrio do passado. (…)
Produzir é preciso, desde que salvaguardemos sustentavelmente as reservas naturais não renováveis. Mas distribuir também. Capitalismo equilibrado na produção, nada contra. Socialismo equilibrado, ou seja equidade, na distribuição, tudo a favor. Assim se conciliariam em termos hábeis os dois modelos que se degladiaram e falharam. No novo Mundo, as escolas mediáticas poderão assumir o papel fundamental de verdadeiras escolas, ajudando as escolas clássicas a preparar o novo cidadão para a virtude cívica e a solidariedade. O sonho utópico de todos os federalistas - uma paz perpétua e universal -poderá então converter-se em realidade. Entretanto, cabe à escola clássica um papel importante: familiarizar-se com as exigências da sociedade do conhecimento e do saber, e com as novas ferramentas técnicas da sociedade informática, electrónica e cibernética, e adestrar no seu manejo os seus alunos, cidadãos do futuro. Prepará-los pois para, a partir de um saber básico, único para todos, aprenderem a aprender, ou seja, a actualizarem-se, no tu-cá tu-lá de todos os dias como computador, a Internet, o telemóvel multi-usos, ''o zapping televisivo''. (…)
4. O relógio recomenda-me que, me fique por aqui.(…)
É verdade que, sem um razoável patamar de igualdade, ainda que relativa, a liberdade é uma ficção. A um cidadão com fome, de que serve o voto? Mas o excesso de igualdade mata a liberdade. Morta esta, morre também a igualdade. Foi a lição dos modelos colectivistas dos países de leste. Inversamente, o excesso de liberdade, no temperado pela igualdade que é condição de dignidade, mata a própria liberdade. É a experiência do triunfo do ultra-liberalismo do Ocidente, após o fim da guerra-fria.
Munidos desta dupla sabedoria, temos de corrigir agora, sem esperar que igualmente implodam, os desequilíbrios da exasperação económica ultra-liberal. O Mundo não comporta por muito mais tempo em paz social, mais pobres, desempregados e analfabetos. Ou corrigimos o modelo que faz explodir o seu número, ou condenamo-nos a uma catarse social violenta, de que não é fácil prever os contornos.
Temos de substituir, ou no mínimo corrigir, o modelo capitalista e ultra-liberal baseado na competição, que faz do outro um adversário, ou no extremo um inimigo, no consumo artificial suportado pelo polvo publicitário, na concentração da riqueza como novo bezerro de ouro, no máximo lucro como nova divindade, no crescimento não sustentado como nova forma de suicídio colectivo a prazo.(…)
E concluo que uma liberdade universal se abeira do conceito de anarquia, que é a negação da liberdade. Para mim, a livre competição, por exemplo, não pode competir em dignidade e altura com a liberdade de pensamento. De igual modo a livre troca, o livre câmbio, a livre iniciativa económica, a livre especulação, a livre concorrência.(…)
5. Sobre ''os valores'', terceiro item do exercício de casa que me foi determinado, direi o quê? Pois que sofreram também, e continuam a sofrer, as consequências do sismo tecnológico que abalou o Mundo.
Durante séculos, quer os valores de base religiosa, quer os de base racional, caracterizaram-se pela estabilidade. Mantiveram-se imutáveis, ou pouco menos, a tentações de mudança. Muitos deles reclamaram-se mesmo do privilégio da perenidade. Mas, surpreendentemente ou não, viriam a revelar fissuras de transitoriedade, acabando por fragorosamente ruir. Hoje, é raro o valor ético tradicional que mantém, intacto, o seu poder de controlo dos pensamentos, das palavras e das obras do cidadão comum. O mundo moderno em larga medida se deseticizou. Os pilares dos valores éticos e comportamentais anteriores à última guerra eram a família, primeira tutela, primeira referência e primeira escola; a segunda escola, onde pontificava o professor, temido, respeitado, ás vezes amado; as Igrejas, delegadas de Deus na Terra, temido e amado simultaneamente; os Estados e a sua autoridade nas vertentes legislativa, administrativa, policial, em última instância militar; enfim, as comunidades rurais laboratórios e reservas de costumes salutares! O bem e o mal tinham fronteiras bem definidas. E o próprio juiz de dentro de cada um de nós, que nunca se jubilava, chamado consciência moral, vivia em permanente diálogo connosco. Mas as maravilhas técnicas posteriores à Segunda guerra Mundial viraram o mundo do avesso, subvertendo os seus tradicionais equilíbrios e a mesmice das suas rotinas. (…) O próprio Deus, durante séculos editor responsável dos mais sagrados princípios éticos, foi expropriado de alguns dos seus principais atributos, entre eles o da autoria, ou no mínimo do exclusivo, da criação da vida. A ciência genética, que ao decifrar o ADN provou a origem comum de todos os seres vivos, deu razão ao despojado Francisco de Assis, que se considerava irmão de todos os seres vivos. Sejamos francos: era razoavelmente esperável que os valores tradicionais, suportados por realidades que ruíram, se mantivessem intocados após esta colossal hecatombe? A família, dissolveu-se; a escola entrou em pane; as autoridades espirituais perderam audiência e altura; as comunidades rurais são asilos da terceira idade; a chamada consciência moral é hoje uma teimosia de velhos. O jovem cidadão, esse, desquitou-se de referências e tutelas, e é hoje o arquitecto único de si mesmo, senhor da sua vontade e do seu nariz, a ''última das autarquias'' no dizer de Burdeau. Os valores por que se pauta são os do hedonismo, da insolidariedade, do consumismo, da competição, da concorrência, do sucesso individual medido pela acumulação de riqueza. Aprendeu-os na escola - às vezes única - que frequentou desde mais cedo durante mais tempo, a escola mediática. Eis o homem novo, o homem sem valores éticos, na melhor das hipóteses o homem dos valores cívicos, com assento nessa nova Bíblia que é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, mais a filosofia social que lhe subjaz. Chega?(…) Nada disto impede que eu tenha de reconhecer que, em muitos aspectos, o Mundo é hoje melhor. O progresso científico iluminou trevas e libertou homens e povos. Derrubou ditadores, democratizou ditaduras. Mas, até agora, pelo preço de desequilíbrios organizativos, sociais e éticos que ainda não fomos capazes de evitar.
Sê-lo-emos um dia? É preciso não perder a esperança. Civilizações, sem excluir as mais brilhantes, nasceram e morreram. E houve rupturas civilizacionais, revoluções, renascenças. Porque não outras?
6. Imagino que, pelo menos alguns de vós, acharão por demais pessimista esta minha visão das coisas. Admito que o seja. Mas prefiro o pessimismo à desatenção e à indiferença. Já alguém disse que ''o pessimismo é hoje um dever cívico''. Estou de acordo. E relembro, a terminar, o conselho de Maquiavel ao Príncipe: ''Se queres evitar a revolução, faz a revolução''. Teve razão, o velho sábio. A pior das revoluções é a que nos surpreende, a que não foi feita a tempo por nós.
Foi um privilégio ter podido estar hoje aqui convosco.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Comissão das Comemorações





Ao longo da sua reconhecida e prestigiosa actividade de ensino, que já atravessa três séculos, vários edifícios serviram de casa ao Liceu de Coimbra, Liceu José Falcão, Liceu Júlio Henriques, Liceu Normal D. João III, actual Escola Secundária José Falcão.Qualquer que seja a designação, cabe agora a todos os actuais actores lembrar que em 1836 foi criado por Passos Manuel o Liceu de Coimbra, instalado no antigo Colégio das Artes e na dependência da Universidade, e também lembrar que no edifício da Avenida Afonso Henriques, concluído em 1936 como sede do Liceu D. João III, funciona a actual Escola Secundária José Falcão, digna continuadora desse Liceu. Para celebrar estas efemérides foi constituída uma Comissão Executiva composta por Dr. Jorge Carvalho, professor e coordenador da Comissão, Drª Regina Rocha, professora e Presidente da Assembleia de Escola, Dr. Reinaldo Elói, professor, Drª Palmira Albuquerque, antiga professora, Senhor Álvaro Perdigão, antigo aluno, D. Maria Fernanda Fonseca, antiga funcionária, Dr. Luís Fernandes, em representação da Associação de Pais e Francisco Granjo, aluno e Presidente da Associação dos Estudantes
A Comissão Executiva das Comemorações elaborou um ambicioso programa composto por diversas iniciativas, com o objectivo de trazer para a actualidade o importante papel desempenhado pelas instituições que agora se pretendem evocar e contribuir para o reencontro de várias gerações de alunos, professores e funcionários que passaram, ao longo dos anos, por este Estabelecimento de Ensino.A primeira iniciativa das comemorações ocorreu no passado dia 30 de Setembro, com a presença do Presidente da Câmara, Dr. Carlos Encarnação (Presidente da Comissão de Honra das Comemorações) e do Dr. António Almeida Santos, ex-Presidente da Assembleia da República, ambos antigos alunos do Liceu D. João III. O ilustre antigo aluno Dr. Almeida Santos proferiu uma brilhante conferência subordinada ao tema "Escola, Liberdade e Valores", que mereceu o aplauso dos antigos e actuais alunos, professores e funcionários que lotaram a capacidade do Auditório da Escola, espaço onde teve lugar a conferência.O programa das comemorações apresentou um conjunto de iniciativas que decorreram durante todo o ano civil de 2006, com a realização de exposições, palestras, conferências, debates, iniciativas de cariz musical e desportivo, concursos entre alunos, tendo o seu apogeu em 14 de Outubro de 2006 com a realização de um Sarau de Gala no Teatro Académico de Gil Vicente, onde se encontrarão várias gerações de alunos do Liceu D. João III e antigos e actuais alunos da Escola José Falcão e seus familiares.
Integrando o programa das Comemorações, destaca-se a criação da Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários do Liceu D. João III e da Escola Secundária José Falcão, tendo tido lugar a celebração da escritura notarial da criação da Associação no dia 19 de Abril, no Ginásio da Escola, pelas 17h, contando com a presença de muitos interessados na constituição da Associação, sendo a Comissão Instaladora composta por Drª Palmira Albuquerque, Senhor Álvaro Perdigão e D. Fernanda Fonseca que exercerão o seu mandato até à realização de eleições para os corpos sociais da Associação.

O Coordenador da Comissão Executiva das Comemorações
Dr. Jorge Carvalho

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Entrevista ao Presidente do Conselho Executivo



Garras: Dar início ao novo período de gestão da Escola com a comemoração dos 170 anos da sua fundação foi uma decisão arrojada. Como surgiu a ideia de dinamizar tal projecto?
Dr.Etelvino Rodrigues (E.R.) A ideia inicial partiu do 11º Grupo A, mais concretamente do colega, Dr. Jorge Carvalho. O CE entendeu que a ideia era interessante. Por isso, acarinhou-a e procedeu à constituição de uma comissão que planificou, concretizou e deu relevo interno e externo à efeméride.
Garras: Quais os problemas que se colocaram à concretização de um programa com essa dimensão?
E.R.: A comissão poderia responder melhor. No entanto, é de salientar que o programa implicou muito tempo na concepção, preparação e concretização do evento, o que revela um esforço digno de registo. Problemas houve-os, mas de natureza exclusivamente financeira, pois embora tivéssemos inscrito na proposta de orçamento da Escola uma verba que considerámos necessária, tal não veio a ser concedida.
Garras: Sabemos que este tipo de evocação é uma forma de reavivar a memória de uma instituição antiga, como a nossa, mas também de reafirmar a identidade de todos os que hoje integram a comunidade escolar. Que balanço é possível fazer destas comemorações?
E.R.: Muito positivo. Por um lado, os objectivos definidos para assinalar essa data importante foram conseguidos. E por outro lado, reavivaram-se antigas e boas memórias concretizadas através da constituição da Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários do Liceu D. João III/Escola Secundária José Falcão, iniciativa, que urge louvar.
Garras: Para além da comemoração dos 170 anos, quais as metas mais prioritárias estabelecidas pelo CE para o presente mandato? (Projectos em execução e os que estão calendarizados para realização).
E.R.: Remetemos, na íntegra, para as linhas programáticas que definimos aquando da apresentação da nossa candidatura. Claro que esperamos sempre mais, sendo certo que o desejável nem sempre é possível. Gostaríamos, de modo especial, no entanto, que o edifício fosse totalmente restaurado. Foi-nos prometido que o seria, por quem de direito. Até à data envidámos todos os esforços para o conseguir. Talvez venha a acontecer no decurso de 2007.
Garras: Há um sentimento especial ao ter a responsabilidade de gerir uma escola com os pergaminhos da Escola Secundária José Falcão? Que balanço faz da experiência até ao momento?
E.R.: Relativamente á 1ª parte da pergunta, direi que agimos com a consciência de que fazemos o melhor que podemos e sabemos, o que, só por si, nos dá uma grande alegria e motivação. Quanto á 2ª parte, até ao momento, consideramos o balanço positivo.
Garras: Que apreciação faz à autonomia das escolas?
E.R.: Pensamos que a autonomia, no seu verdadeiro sentido, não existe. O que existe é um certo poder discricionário que é coisa muito diferente. Procuramos exercê-lo sempre dentro da legalidade, embora com bom-senso e a prudência necessária.

Editorial















« A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam.
(…) mapa das interpretações que se cruzam, como cicatrizes de sucessivas pancadas. »
(Ana Hatherly)

É uma efeméride de peso, pelos 170 anos da fundação da escola, e pelos 70 anos da construção do actual edifício. Daí esta especial reaparição do Garras, que se faz para celebrar, não tanto a criação formal da instituição ou a sua edificação, mas para recordar que sem essa plêiade de ilustres e de anónimos, professores, alunos, funcionários, que ao longo de quase dois séculos, alicerçaram o Liceu de Coimbra, o Liceu Júlio Henriques, o Liceu Normal D. João III, e a Escola Secundária José Falcão, nada haveria para comemorar.
De que se fala pois quando se diz comemoração? Certamente do impacto da memória enquanto fictícia claridade das sobreposições, como diz Hatherly, e que, exactamente por isso, se constitui como registo impreciso, limitado e obviamente lacunar. O nosso propósito – necessariamente singelo – foi evocar um momento simbólico da história desta escola, através de depoimentos de quem nela trabalhou ou ainda trabalha.
É o que o facto de o Liceu se transfigurar em colégio e mais tarde em escola, ou que em 1936 tenha passado do apertado edifício novecentista para uma colossal construção do Estado Novo, é em si mesmo pouco significativo, desde que não esqueçamos que tal só aconteceu, porque o empenho revelado por professores e alunos, determinou a necessidade de construir uma nova e mais ampla estrutura física. É assim que quando nos reportamos à decisão da criação do Liceu por Passos Manuel, até à concepção do actual edifício pelo arquitecto Carlos Ramos, é sempre da importância das pessoas que falamos, porque é delas que depende a sobrevivência de qualquer instituição, particularmente quando se trata de projectos ligados à actividade educativa. Ora esse contributo está aqui, directa ou indirectamente associado a uma impressionante lista de notáveis, de Almada Negreiros a Eça de Queiroz, de Almeida Santos a José Afonso, de Jaime Cortesão ou Eugénio de Castro a Vitorino Nemésio ou Bissaya Barreto, de Miguel Torga a Rómulo de Carvalho, enfim, um elenco avassalador.
Numa época em que se fecham escolas, alienadas à voragem da especulação imobiliária, ou pela alegada insuficiência do número de alunos, num tempo de institucional humilhação do papel dos docentes, o Garras não quis com esta comemoração, esquecer que os projectos só se realizam pelo labor, devoção e grandeza de alma das pessoas – das mais destacadas personalidades, mas em especial dos epígonos, como diz Alfredo Reis – que afinal sustentaram o Colégio, o Liceu e a Escola durante quase dois séculos.
Celebrar a escola é pois recuperar a presença - como memória de sobreposições - dos que, ao longo da sua existência, exaltaram o melhor da sua condição de professores e a sua mais rica experiência enquanto alunos. É que, tal como não há história sem a vontade e a combatividade dos homens, também não há escolas capazes de ensinar ou onde se possa aprender, sem a motivação e determinação de professores e alunos.
Esta edição especial perseguiu esse propósito. Daí que tenhamos querido saber da experiência vivida por alguns professores e alunos que por aqui passaram, outros ainda presentes e alguns dos que recentemente a deixaram. Quisemos também celebrar o espaço físico de excepção que é o José Falcão, e por isso preenchemos esta edição com uma diversidade de panorâmicas que ilustram a grandeza e a beleza deste edifício, tendo ainda contado com o trabalho do professor João Ricardo, que, na sua pesquisa sobre o projecto de construção do edifício, nos apresentou alguns exemplares do mobiliário original igualmente concebido para o efeito. Esta foi uma escola planeada de raiz, ao serviço dos que a iriam frequentar, pensada para se deixar esculpir pelo tempo dos mestres e aprendizes, uma escola que se renova em cada lição, em cada projecto, em cada momento de convívio. E é essa experiência que procuramos recuperar nesta edição, com a contribuição voluntariosa de todos os que quiseram associar-se e a quem publicamente agradecemos.
Para além dos parabéns que a Escola Secundária José Falcão inteiramente merece, o seu maior mérito é o de nos recordar uma elementar, mas cada vez mais esquecida verdade: nada do que queremos fazer numa escola se deve fazer contra as pessoas que nela trabalham, não só porque nada se pode fazer sem elas, mas especialmente porque tudo o que há a fazer, tem de ser feito por elas e para elas. São elas o segredo da sua longevidade. É disso exemplo, o discurso de Almeida Santos na inauguração das comemorações. Foi isso que José Falcão nunca esqueceu e que no José Falcão nunca se deverá deixar de lembrar!

A. Luís N. Ribeiro